Luz, câmera e ação!
As luzes são ajustadas, cada ponto medido por fotômetros sensíveis que analisam a luz incidente e refletida. Os operadores de câmeras se posicionam em locais estratégicos para as capturas de melhores imagens, orientados por um diretor de vídeo que se prepara para a comutação e cortes precisos, pontuados por ritmos e musicalidade das frases visuais. Enquanto se dá essa preparação técnica, maquiadores preparam cuidadosamente os rostos dos personagens principais, corrigindo imperfeições, retocando-os de maneira personalizada e criativa.
A ópera Tristão e Isolda será transmitida ao vivo? Um debate político entre candidatos majoritários? Faustão e seus convidados se preparam para o começo do programa televisivo? Tiririca e seus "assessores educacionais" na preparação do cômico show diário? O Sr. Rogério Carvalho, Zequinha da Silva (o lulinha), o eminente ex-ministro da Casa Civil e mais alguns mensalícios ilustres, festejando entre as câmeras televisivas o lançamento do livro de autoria coletiva intitulado "Como enriquecer em oito anos sem fazer esforço", prefaciado por Lula se expressando no autêntico dialeto catinguês?
Acho que todos os leitores, ou a maioria deles, se derem possibilidade à imaginação reflexiva só encontrarão uma resposta: Uma sessão de julgamento do Supremo Tribunal Federal transmitida ao vivo! Esse sim, um verdadeiro show de vaidades e com conotações populistas transmitida para todo o Brasil. Tem de tudo: olhares lânguidos insinuantes, posses cuidadosamente estudadas, frases empoladas, vozes impostadas, frases poéticas de efeito, e, algumas vezes, essa harmonia já intitulada de "show judice" é quebrada por ásperas dissonâncias de qualidade discutível. As línguas afiadas e ferinas são implacáveis quando alardeiam que nesse "show judice" tem de tudo, menos o bom Direito e o respeito pela separação dos poderes da Republica. Será?
Apesar de ter absorvido o paradigma construtivista da Suprema Corte dos EUA, esta jamais permitiu televisionamento das suas sessões de julgamento, bem como outros tribunais superiores dos países europeus desenvolvidos e com grande história de cultura Juridica. Dessa afirmação não pode decorrer a idéia que as democracias desse países sejam inferiores ao da nossa Pátria amada. Ao contrário, a Câmara dos Lordes, por exemplo, jamais permitiu televisionamento das suas sessões e nem por isso perdeu a legitimidade, mantendo-se constantemente em primeiro lugar nas pesquisas de opinião publica. Já o nosso Judiciário com televisionamento, briga acirradamente pelo último lugar com a instituição policial. Interessante, não?
Uma certa vez indaguei a um amigo advogado sobre esse fato e ele me deu uma resposta inteligente e curiosa. "Quer saber a verdade", disse-me ele, "não se pode confundir publicidade de atos judiciais, direito à audiência publica, com shows televisivos, pois esses são apropriados para os políticos eleitos que devem prestar contas e serem fiscalizados em suas atividades pelas pessoas que representam". Finalizando, arrematou com uma analogia interessante: "Um bom juiz é como um bom árbitro de futebol; quanto menos ele aparece, melhor é o jogo". Pensando bem, acho que o colega tem razão. Se um árbitro aplica a regra sem invenções construtivistas, sem recorrer a princípios norteadores abstratos e vagos, como, por exemplo, o do "gol justo", o da "infração razoável ou proporcional", possivelmente suas decisões legitimadas pelas regras não serão notadas e o jogo fluirá sem maiores problemas. Mas se o referido árbitro resolver que deve fazer parte do espetáculo de maneira proeminente, rivalizando-se com os jogadores em busca de aplausos, ou em alguns casos, interpretando as normas para atender interesses de um determinado clube, quase sempre a discórdia ruidosa acontecerá, vaias serão ouvidas e sua notoriedade se instaurará com aclamações não muito dignas, tais como, "juiz ladrão", "filho da puta", dentre outras mais picantes.
Os nossos juízes precisam entender de uma vez por todas, que os astros de um jogo democrático são os representantes políticos que são escolhidos e fiscalizados pelo povo que possuiu a verdadeira soberania popular. As câmeras, as luzes devem estar apontadas para eles e não para os juízes que possuem a grandiosa missão de zelar pela legalidade e pela ordem democrática com isenção e imparcialidade. Infelizmente, essa Constituição contraditória, esquizofrênica produzida por um "congresso constituinte" espúrio, sem legitimidade, dá sustentáculo ao esquecimento desse importante principio. Mesmo assim, se os magistrados observassem com zelo o Art. 1º, parágrafo único da "Colcha de retalhos cidadã", veriam a diferença entre o verdadeiro poder, conceituado nesse parágrafo e o poder formal instrumental, disposto no Art. 2º. Claro se não existisse a vaidade, a vontade de usurpação, o desejo inconsciente de ser político, a vivência de valores platônicos centrada na supremacia dos reis filósofos governantes, o nosso Supremo Tribunal Federal já teria declarado a supremacia dos poderes eleitos, como assim fez a Câmara dos Lordes em pleno território da commom law, por influencia de Blackstone e recentemente reafirmada por Lord Bingham no julgamento do caso Jackson versus Procuradoria (2005).
Ė antiga essa luta pelo poder por parte dos juristas em todo o mundo e em vários momentos históricos. O referencial sempre é o judicial review, instrumento de criação jurisprudencial da Suprema corte do EUA, influenciada pela doutrina jusnaturalista de Sir. Edward Coke. No entanto, mesmo na terra do Tio Sam, essa doutrina da supremacia do Judiciário foi moderada devido a crise constitucional estabelecida no governo Roosevelt, com a afirmação da razoabilidade presumida das leis econômicas e sociais. No Brasil, em vez do comedimento estratégico, do respeito pelo legislador, mesmo sob as vestes da hipocrisia, assistimos uma saraivada de censuras ao legislador, construções de legislações, e, o que é pior: a volta da censura por um difuso órgão censor, encastelado sorrateiramente no judiciário. Se o principal pilar de uma democracia é a liberdade de opinião publica, como entender que num debate político os juízes fiquem censurando e penalizando os debatedores, embasados em critérios vagos e subjetivos? No EUA, terra do construtivismo judicial, a imprensa ou candidatos podem aventar quaisquer hipóteses comportamentais, sem que o judiciário interfira. Aliás, tanto lá, como em outros países desenvolvidos, não existe Justiça Eleitoral. O que ofensivo num debate político, senhores juízes? Será que é a Democracia, a ofensa aos seus anseios oligárquicos?
Os senhores juízes se defenderão alegando que estão lastreados em uma boa doutrina e que devem conhecer a realidade fenomenal, através de exames acurados emitidos por especialistas, confrontando varias opiniões alternativas para efetuar testes na legislação existente, em busca do grau máximo de justiça. Em outras palavras, o que o legislador faz, a ampla prognose investigativa autorizado pela Constituição, os senhores juízes vão refazer para verificarem o seu enquadramento nos seus critérios particulares do justo, razoável e proporcional. Isso é o não é poder moderador? "Não", dizem os ilustres magistrados, "isso é interpretação conforme os princípios constitucionais". Pode parecer piada essa argumentação, mas, infelizmente, não é. Isso e outras coisas fazem parte de um show televisivo intitulado "quero minha ditadura de volta" ou "como era doce o meu general", que alguns órgãos de comunicação se empenham na divulgação ampla e constante. O Parlamento que é o centro de ressonância da sociedade em uma democracia decente, onde se encontram as variadas classes sociais, no Brasil encontra-se em processo de continua desmoralização, motivo de constantes chacotas e piadas, tudo isso por culpa exclusiva dos seus integrantes que não honram a representatividade recebida. Mas será que a culpa é somente dos senhores representantes? Será que podemos esquecer a imensa legião formada por pessoas que votam por um tijolo ou por uma bolsa "disso ou daquilo"?
Enquanto isso, o STF continua com o seu show televisivo demostrando para as pessoas que pode ser um Parlamento concentrado, ou, no mínimo, um poder moderador. As câmeras filmam, os juízes sorriem, argumentam, discursam, fazem gestos eloqüentes, saltitam de alegria. Não é para menos: estão quase governando a nação! Os seus colegas italianos, franceses, portugueses e germânicos devem estar morrendo de inveja. Coitados, não são vitalícios e se limitam muito na arte maravilhosa de governar. Claro que oitos anos de governo de um pingunço analfabeto facilitou muito a escalada de usurpação, ou melhor, de conquista do poder, mas não se pode retirar os méritos dos senhores juízes. Se não fossem eles - com o medo cúmplice dos políticos corruptos - como os juízes de instâncias ordinárias poderiam estar mandando fazer escolas, distribuindo medicamentos - mesmo sem a devida previsão orçamentaria -, perdoando as multas de trânsito, julgando indevidos impostos devidos por contribuintes astutos, anulando inquéritos administrativos de policiais truculentos e corruptos, arquivando ou julgando inocente por insuficiência de provas, os corruptos de colarinho branco?
Só me preocupa uma coisa. Examinando a nossa história política, verifico que foram poucos os anos de democracia, mesmo assim, claudicante. Acham que estou exagerando? É só contar. E durante todo esse tempo, o Judiciário desempenhou um papel lastimável em defesa dos valores democráticos, quase sempre domesticado pelos ditadores, e algumas vezes horrorizando a nação, como foi no caso da extradição de Olga Benario para a Alemanha nazista, ou colocando o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade, em 1948. Durante a longa ditadura militar nunca se viu ou ouviu o protesto do STF contra a ilegitimidade dos ditadores. Não se diga que os princípios de justiça e de direitos civis - que atualmente são usados para censurar a legislação democrática - não existiam na época. Existiam e o medo também. Enquanto as mortes, as torturas, as sedições aconteciam, onde estavam os juízes guardiões das liberdades civis e democráticas? Quem lutava nesse pais contra esse estado terrorista e autoritário? Os políticos! Esses mesmos que os senhores juízes censuram e tentam desmoralizar. Com todos os defeitos são eles que lutam, que tentam mudar o pais. E essa regra vale para o Brasil e para todos os países. A tão elogiada Suprema Corte dos EUA sempre foi um forte obstáculo para as mudanças sociais, passando centenas de anos declarando que a escravidão era um direito natural do proprietário e censurando todas as legislações que ampliavam os direitos dos trabalhadores. Quem efetuou as verdadeiras mudanças em plagas americanas? O Congresso e o Executivo, capitaneado pelos Presidentes LIncoln Roosevelt, os poderes eleitos.
O show televisivo judicial do STF, divulgando suas investidas legislativas, censurando ou sub-rogando o legislador me preocupa muito. Enfraquecer o Poder Legislativo é enfraquecer a democracia, mesmo sob a desculpa de omissão do referido poder. O povo não precisa curadores especiais, nem da proteção paternalista do Poder Judiciário. A Democracia é sempre jovem, mas não é uma menor relativamente incapaz. A história registra que a desmoralização continua do Poder Legislativo desestrutura os pontos de equilíbrio sistêmicos, aumenta as dissonâncias sociais e políticas, causando uma crise de governabilidade e um vácuo de poder. Alguém irá ocupar esse lugar e só não será o Poder Judiciário. Quem sabe, o tacape ou a tapeação; os tanques nas ruas ou os mensalões no Congresso; um militar sisudo com a espada em riste ou ou um populista com uma garrafa de cachaça na mão. Tudo vai depender das circunstâncias.
Ivan Bezerra de Sant Anna
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