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terça-feira, 17 de março de 2015

O impasse


O impasse 


Ela tinha se preparado como podia. Uma camisa azul, um cinto amarelo, pequenos detalhes que poderiam lhe identificar como brasileira, mesmo que muitas pessoas lhe negassem esse simples direito. Seus filhos olhavam para essa cuidadosa preparação com caras de mortadelas, um sonho de consumo que faltou no café da manhã. Ela tinha que ir, apesar das ameaças do líder político da invasão que ela pousa com precariedade, pois a bolsa que recebeu estava sendo ruída pelos preços rebeldes, os serviços de saúde estavam cada vez piores e seus filhos se entulhavam em uma pocilga que a Presidenta chama de "nova escola popular".

Seu pai, um ex-ferroviário, comunista de carteirinha, fitava com olhos pretéritos, disparando um "na minha época era diferente!", tentando exibir um orgulho que o tempo teimava em lhe subtrair. "Eu lhe disse que esse ladrão era informante do Romeu, pois a ala militar do PCB mandava essa informação. Mas você acreditava nele...", fuzilava  com ironia cruel, o velho comunista que, nos fins de semana, entre uma cerveja e outra, fechava os olhos para ouvir a Internacional, um velho vinil que resistiu aos ataques das desgastadas agulhas.

"Existem muitos comunistas ao lado dele, pai", estalou a língua irônica que lambia os beiços, ansiando por um batom faltoso. "Que comunistas? São uns oportunistas em busca de cargos e visibilidade. O camarada Stalin sempre combateu essa corja", espumou com a baba da revolta. Um dos meninos, sensível    aos gritos, colocou sua mão na alvura crespa da cabeça que aprendera amar, e assobiou um "cuidado com o coração, vô".

Na outra manifestação da sexta feira, ela não foi. Como poderia? Era uma trabalhadora e a sexta era dia de labuta, e mesmo o líder da comunidade lhe prometendo alguma compensação financeira, um passeio em um ônibus bacana, era uma pessoa pobre e precisava do emprego. Não entendia porque essa manifestação de trabalhadores era convocada para um dia de trabalho. Somente os ricos e os desocupados poderiam ir! O vizinho tinha lhe dito que uma maneira de virar rica era ir para a manifestação do domingo, pois Lula disse que todos que fossem participar dela, eram "panela cheia", elite branca e ricos. Ela riu com a ideia de se tornar rica e branquinha por decreto lulista. Quem sabe se indo, não comeria uma coxinha de galinha? Ela gargalhou muito, mas iria por outros motivos.

Ela olhava o desfile passar, e eles nem percebiam a sua presença! Entre outras coisas, cantavam canções que falavam da libertação do povo, mas nem um olhar para seus filhos que, como todos outros do mundo, eram crianças que deliciavam com todos os desfiles. Era preta e pobre, e o preconceito nunca lhe deu trégua, nem mesmo para incluí-la naquilo que eles chamam povo. Mas ela sabia, como disse o poeta, que "a rua é do povo, como o céu é do condor", e não era uma simples "companheira" com o voto na mão, como o líder da comunidade queria que ela fosse, porém era algo mais digno, uma pessoa, uma cidadã. A rua era dela e dos seus filhos, quisessem ou não, os que querem se apossar dela. Caminharia com pés descalços, gritaria por suas carências, cantaria as mudanças com voz de uma Asa Branca que prenuncia a boa chuva, sentiria a solidariedade, o calor dos corpos unidos, mesmo que alguns insistissem na distância.

Mas tudo isso era ainda um sonho, pois não poderia ficar por muito tempo. Seu pai deveria estar com fome, embalado por sonhos e pela Internacional. Os ônibus eram arredios, lotados e raros, e a volta por uma rua sem povo, pode estar infestada de bandidos que não distiguem os ricos dos pobres. No entanto, ela estava feliz. Na próxima manifestação iria pisar firme no calçamento da rua, olhar nos olhos claros dos "caras pálidas" e cantar:

Eu sou o povo!

Ivan Bezerra de Sant' Anna


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