Pesquisar este blog

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Fracassado

O fracassado

O velho revolucionário fechava os seus olhos que faiscaram como vaga-lumes irrequietos durante um bom tempo. Olhos que eram para os despossuídos e explorados, como duas estrelas gêmeas que possuíam a magia de trazer o céu para o duro chão do mundo. Era um dia frio, irmanado com o flog, tão comum em um dia inglês, nada propício para um grande viagem, mas suas pálpebras pesavam, sentia o cansaço, o peso do mundo. No entanto, fecharia seus olhos serenamente, apesar de tantos livros que ainda deveria escrever e das lutas que deveria travar. Não gritaria contra o destino como Prometeu, seu mito predileto, e nem daria um soco no ar, como fez Beethoven, em noite de tempestade, nos derradeiros momentos de existência mundana.

Valeu à pena uma vida de dificuldades financeiras, expulsões de vários países europeus, uma dedicação férrea a uma causa que o fez esquecer que seus filhos passavam dificuldades alimentares? Ao seu leito, com um sorriso que nunca desapareceu do seu rosto, Jenny segurava a sua mão, e, naquele momento, teve a impressão  que esse sorriso resignado lhe  atingia como uma leve bofetada, uma declaração gentil e amorosa do seu fracasso como esposo e pai.

Morreria como um fracassado, ladeado pelo amor de poucas pessoas, as quais não lhes deu a devida atenção merecida? Onde estavam os companheiros, os trabalhadores, pelo quais dedicou quase toda a sua vida? Seria a sina de alguns judeus que ousaram desafiar a ordem preestabelecida, como foi o caso do Nazareno, que morreu agonizando em uma cruz, pobre como Jó, lamentado apenas pelas três Marias? Seria uma maldição lançada contra quem se dedicou à arte do pensar, como foi o caso de Sócrates que viveu na indigência, sustentado por admiradores e amigos?

A sua respiração era inconstante como ondas marítimas que vão e voltam. Ah...as ondas... Essas gigantes marítimas  o fizeram lembrar de outro fracassado que morreu esquecido, depois de ter descoberto a América, um intrépido aventureiro chamado Cristóvão Colombo, que ousou desafiar os mares do medo e do preconceito. 

Não era tão ruim ser um fracassado, pensou. Estava bem acompanhado por fracassados que mudaram o mundo para melhor. Não era um crente e não acreditava em religiões, mas como esquecer Francisco de Assis, um fidalgo rico que preferiu viver na pobreza como um fracassado? Um ato de loucura ou uma sublime imitação do seu Mestre Jesus?

Nesse momento ímpar da sua existência, no crepúsculo magenta do vôo da coruja, sabia que, na maioria das vezes, o pão e o vinho estiveram ausentes da sua mesa, no entanto, em compensação, as palavras eram abundantes e generosas como o sol do amanhecer, e na regência da sua batuta, elas bailavam em frases e parágrafos exuberantes. Escrevera muitas páginas sobre a filosofia dialética, denunciando individualismo possessivo, a exploração das pessoas e a necessidade de um devir harmônico, baseado na solidariedade. Mas era forçoso reconhecer que na sua simplicidade discursiva, o Nazareno foi transcendente, percebendo que o motor da dialética é a busca constante pela igualdade, e quando disse que "os humildes herdarão a terra", não falava em uma sociedade de iguais, de vida comum, um comum(ismo)?

O velho filosofo, depois de um longo suspiro, fechou os olhos, levando a certeza que não fracassou, mas que o seu trabalho, sua luta, apenas lhe despojou das riquezas efêmeras, ensinando-lhe a virtude da humildade igualitária.

Ivan Bezerra de Sant Anna