Reflexões da Bola
Não gostei de ver um povo triste, de sofrimento social endêmico, que sempre me honrou com seu carinho, com toques sutis e insinuantes dribles, fazendo-me galgar o panteão da arte. Dizem que nasci na terra da Rainha, embora confesso não me lembrar desse fato, pois a memória longínqua põe uma densa cortina de névoa ante meus arredondados olhos, como a pesada neblina que encobre os altos cumes altaneiros. Se nasci em um país da realeza, entretanto, foi nessa terra plebéia de mestiçagem criativa que me tornei uma rainha, altiva, viçosa e de vaidade sublime. Portanto, nesse dia fatídico, chorei ao ver os olhos úmidos de um idoso menino e as lágrimas amazônicas que sulcavam o rosto de uma criança, envelhecido momentaneamente pela dor.
Ah, minha terra dos cajus, dos coqueirais, das belas florestas. Quantos pés me tocaram com gentilezas criativas, brincando de esconde-esconde dos dribles geniais e das malícias generosas. Não nasci para levar chutões ou ser relegada ao esquecimento por causa de uma canela mais atraente, para aqueles que visam tão somente resultados bisonhos. O que é ganhar um troféu se me esqueceram? Como disse um filósofo dessa terra, Gentil Cardoso, "a bola é feita de couro; o couro vem do boi; o boi come grama; então a bola deve rolar na grama". Nada mais verdadeiro! Gosto de rolar na grama, ser acariciada por pés sensíveis, cavalheiros, fantasiosos e hábeis. Odeio brutamontes que correm como loucos à minha procura, obedecendo estratégias de compactação e de jogadas desesperadas de profundidade. A cada dia que passa sou esquecida, maltratada por culpa de regras antiquadas que possibilitam técnicos pragmáticos, muitas vezes incompetentes, armarem esquemas sonolentos que me impedem tocar nas redes com meus lábios de volúpias desejosas e retirar a magia desse maravilhoso jogo, para qual fui criada.
Que papelão, meu Brasil! Por que você fez isso comigo? Logo na terra que me adotou, ensinando-me a arte e a dignidade, dos pés mágicos de um Zizinho, Pelé, Danilo Alvim, Tostão, Gerson, Didi, Romário e tantos outros mágicos, tive que assistir essa catástrofe que já era anunciada há muito tempo. Apagão? Tsunami? Que cinismo! Será que arranjaram um novo nome para a Seleção brasileira que espelhasse a mediocridade dos seus jogadores? Não podia ser diferente, pois o que poderia esperar de jogadores que foram convocados por um ex-jogador truculento, que sempre me confundiu com aquela senhora de cara oval, mulher objeto preferida dos cultores machistas do Futebol Americano? Eu sou plena de fantasias, menos, é claro, aquelas masoquistas que machucam, humilham e pisam em minha dignidade. Não sou mulher de malandro, e tapas somente de um suave toque de três dedos, um beijo desejoso, uma língua que lavra os infindáveis frutos da minha pele campestre.
Agora estão procurando um bode expiatório, como fizeram em 1950, e o Fred é o preferido. Logo ele que sempre me tratou com carinho, fazendo-me sempre acariciar as redes e nunca seus olhos baixavam para me olhar com insegurança, porque me tinha como amante aos seus pés? Que culpa tem ele se foi convocado sem nenhuma condição física para jogar, vindo de longos períodos de inatividade? Qual é a culpa do bom rapaz Hulk, um jogador somente esforçado, sem o bafejo do talento, um belo dia deram-lhe a camisa que foi do Garrincha? Que dizer do Paulinho, Oscar, jogadores reservas em times europeus, que na Seleção viraram titulares? Como um garoto sem experiência, mesmo sendo um grande talento, poderia ser um capitão do selecionado brasileiro? Ele chorou e tinha que chorar mesmo! Que culpa teve David Luiz de ter se tornado no jogo semifinal, um semáforo verde para os velozes Porsches alemães? Afinal, que culpa tiveram os jogadores que foram ensinados na arte defensiva e desvencilharem de mim em longos chutões caóticos à procura de um solitário atacante, e no jogo contra a Alemanha foram orientados para se tornarem um Tostão, Gerson, Falcão e outros. Apesar do misticismo e da magia que envolvem o futebol - e a nossa imprensa ufanista insistia nele, falando de cicatrizes, peso da camisa e mais algumas bobagens - nem o mais radical espírita acreditaria que os espíritos de Didi, Nilton Santos, Garrincha, Sócrates, poderiam baixar naqueles esforçados garotos de talentos inexpressivos. Deu no que deu! Um bando de garotos perdidos no campo, que não sabiam o que fazer, enquanto os disciplinados e treinados germânicos tocavam em mim com respeito, fazendo-me morder a rede brasileira por sete vezes.
Não houve nenhum apagão, mas uma morte que já vinha sendo anunciada ao longo dos anos. O meu divórcio com eles pode ter sido sancionado pelo apito final do árbitro, mas já estava dormindo em cama separadas há muito tempo. A minha separação teve um marco inicial, quando os técnicos brasileiros copiavam as estratégias defensivas e pragmáticas dos europeus, e os Parreiras começaram a brotar como ervas daninhas. Os garotos das unidades de base dos grandes times, ao contrário de épocas pretéritas, são orientados na prática defensiva, e um garoto que teima dar dribles, fazer firulas comigo, é afastado como indisciplinado. Tempo atrás, eu era conduzida com toques suaves de pés amantes, hoje sou tratada com chutões violentos, arremessos imprecisos, e tudo isso com copiosos aplausos da imprensa brasileira, reverberando o triste chavão, "bola para o mato que o jogo é de campeonato". As faltas se multiplicam e os nossos analistas de futebol minimizam essas violações à regra, dizendo que essa pancadaria é um instrumento estratégico, que visa bloquear o adversário. Mal sabem eles que sou eu que estou sendo travada, e como não posso rolar livre na grama, esvai-se toda arte e talento. Futebol é para homens? Como pode ser para homens se sou feminina por excelência? Para me tocar com arte, os homens, mesmo os mais encorpados, precisam deixar sair as suas feminilidades contidas, em um contraponto criativo, que permita que seus pés rocem com muito mimo, amor e respeito. Esse futebol machista, violento, pragmático, deixa os estádios vazios, e se ainda estou no campo, faço-o apenas com meu corpo, mas minha alma se foi.
Vi e ouvi sua última entrevista, menino Neymar. Que deplorável! Se não consegue enxergar os grandes defeitos que assolam o futebol brasileiro, como, por exemplo, a imensa corrupção dos dirigentes da CBF que corrói toda a estrutura do futebol e da Seleção, deveria ficar calado. Você calado é um poeta, e nisso pouco difere do seu maior ídolo, o Pelé. Não seja petulante, menino. Você é um garoto talentoso, mas pouco me conhece ainda. E digo-lhe: você foi salvo pelo gongo, pois jamais seria o grande jogador da Copa, e isso lhe falo, não pelo seu desempenho mediano, mas por sua pouca idade que lhe presenteia com uma natural imaturidade. Vá com calma, fale menos, e quando tocar em mim, prove que é um verdadeiro homem que honra as chuteiras que calça.
Ivan Bezerra de Sant Anna, psicógrafo da falecida bola