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terça-feira, 3 de maio de 2016

Alucinadamente feliz

"Uma das melhores coisas que acontecem com os pais é perceber quanto os filhos são ao mesmo tempo nada parecidos conosco e completamente iguais".

Jenny Lawson

Talvez essa frase traduza o grande dilema não somente dos pais em relação aos filhos, mas de toda humanidade. Somos tão diferentes, mas, ao mesmo tempo, iguais nos preceitos maiores que nos permitem afirmar com convicção a nossa existência em-si-e-para-si.

A autora, uma bipolar assumida, sofrendo constantemente os influxos de uma ansiedade profunda, assume as suas dores das descidas profundas e as alegrias alucinadas dos voos vertiginosos da mania. Em meio a esse badalar de um pêndulo de polaridades extremas, ela consegue uma lucidez ímpar, típica dos filhos de Lúcifer, o deus dionisíaco dos hebreus, posteriormente alcunhado injustamente como o Senhor das Trevas. 

Poucos se interrogam porque a palavra "lucidez" vem derivada de Lúcifer e fazem uma confusão danada com a palavra "conformismo", quando usualmente dizem: "amigo, vivo no real, sou lúcido, e sonho é para os loucos e sonhadores". Mal sabem eles que viver no Real é uma tarefa para poucos "malucos beleza" que conseguem enxergar a crueza contraditória da vida, a ausência de sentido e de transcendência, o ciclo da vida e a morte, o ato de viver como um milagre, a ser festejado nas festas dionisíacas.

E é isso que a autora faz: festeja as dores da vida com a efusa alegria mundana de Lúcifer, Dionísio e Oxum, três deuses de religiões dualistas ou politeístas que representam o Real. No entanto, essa vivência, mesmo festejada, é um perigoso convite à psicose, o aparecimento de um super-homem amoral, um Gita que é "a vela que acende e o dente do tubarão", um anjo vingador que saboreia as dores dos pequeninos. Talvez por isso é que certas doutrinas, professadas por  líderes salvacionistas, são embasadoras de genocídios grandiosos.

A autora percebe esse perigo e choca, desdenha, ironiza as verdades "normais" das pessoas "saudáveis", brincando com os paradoxos existenciais, cutucado-as com o agulhão da arraia socrática, como se dissesse a elas, "sejam malucas! Somente os loucos vivem a intensidade da vida. Não tenham medo! Ridículas são pessoas com medos ridículos".

A autora consegue captar o verdadeiro humor que provém da alegria e da dor, um riso maduro e pleno, uma fruta que cai ao acolhimento de um generoso solo, e não aquele riso verde, lacônico, enganoso e destrutivo, do qual falou Píndaro: "É precocemente, antes que esteja maduro, que, com o doce fruto do riso, eles despertam o idiota".

Entretanto, na minha modesta opinião, não concordo com a autora quanto a leve aceitação das suas idas e vindas das situações extremamente polares, movimento pendular disparado por gatilhos de condicionamentos inconscientes, como uma situação de cunho predominantemente  orgânico, a ser minimizado por medicamentos que não curam. Como filho de Prometeu, luto contra o determinismo , recusando-me aceitar os caprichos dos deuses, movidos por prepotências lúdicas. 

Estou consciente que algumas pessoas possuam uma sensibilidade muito maior que as demais, portanto estando sujeitas ao enfrentamento do dramatismo do Real. Mas não é somente a elevação  para o cume das alegrias maníacas - uma situação efêmera porque as tensões contraditórias  do Real sempre atrai para as raízes - que vai resolver satisfatoriamente esse ciclo doloroso, pelo qual o corpo sente e ressente.

Ouso dizer que a autora esqueceu de Apolo e seus sonhos. Para os gregos não era possível conviver com Dioníso sem uma  mão estendida para Apolo, pois como dizia Shakespeare, "os sonhos são os estofos da vida". Ante a crueza do Real, a vida precisa de um sentido e ele somente os sonhos performáticos podem dar. Talvez a verdade existencial seja a resultante dialética, sempre provisória, do confronto do Real com as construções performáticas. Assim, aplaudo  a heróica disposição da autora em ser alucinadamente feliz, tentando sair da extrema dor da lucidez depressiva com atitudes corajosas e contundentes das manias exuberantes. No entanto, as mudanças não podem ser somente carnavalescas, mas rotações  profundas de valores, muitos dos quais não foram questionados pela autora, por se encontrarem em sua constelação ideológica do individualismo possessivo e voluntarista.

Cultivo a suspeita que a saúde mental não é manter-se longe dos sonhos e fantasias, mas, ao contrário, vivencia-las com intensidade e prudência, com prazer e cuidado, descendo e subindo os degraus que ligam a impactante lucidez da depressão com os devaneios da mania criativa. Uma grande árvore onde a copa roça as paredes do céu deve possuir raízes profundas, diz, repetidamente em seus escritos, o psicólogo arquétipo James Hillman. Não se deve ter medo da depressão ou da euforia maníaca, pois são ciclos constantes do conhecimento e crescimento existencial. As fantasias sexuais mais contundentes não devem ser percebidas como taras, pecados, impurezas, mas como desejos de alguma persona interna que devem ser avaliadas com sensibilidade e prudência, levando-se em conta o texto e contexto, o desejo e o possível, o arrojo e a prudência, afinal, talvez "no escurinho do cinema" seja mais prazeroso e seguro. 

Em resumo, nos meus devaneios de psicólogo frustrado, tenho a impressão que "não existe pecado do lado do Equador", existe, isto sim, muitos valores arcaicos a serem banidos, muitas culpas sem purgação, pecados sem lastros, e nos casos de bipolaridade sem controle, a ausência central da persona facilitadora, arbitral, prognóstica e performática que é determinante para a manutenção desse determinismo cíclico. Mesmo ela existindo, mas enfraquecida, as associações, os condicionamentos, oriundos de registros passados mal compreendidos serão determinantes para acionar os terríveis gatilhos de uma depressão endógena. 

Resta uma pergunta: mesmo compreendendo tudo isso, como evitar os gatilhos? Que tal um bom psicólogo, que em vez das longas escutas e interpretações dos divãs, seja um dialogador democrático, um facilitar estratégico que não veja apenas um objeto de pesquisa a ser entendido e manipulado, mas uma pessoa falível  e frágil como ele? Tenho uma suspeita que a elaboração de ciclos bipolares controlados, o estímulo das fantasias criativas, com o tempo vão amortecendo os gatilhos inconscientes, da mesma maneira que olhamos nos olhos dos nossos fantasmas, sorrimos, sonhamos, eles acabam progressivamente desaparecendo. O que não mais assusta ou controla, sai de fininho do Pretérito Imperfeito, escorrega macio no Pretérito Perfeito e acaba bem guardadinho no Pretérito-Mais-Que-perfeito. Afinal, no começo tudo não é o Verbo?


Ivan Bezerra de Sant Anna


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