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quinta-feira, 26 de março de 2015

Lara

Lara 



Quando você nasceu, ecoava ainda, reverberando nas paredes do tempo, uma música de letra simples, como as flores silvestres que insistem e persistem sobreviverem sob os contrastes que fustigam a generosa terra. Era o canto do galo de campina, que anunciava um novo alvorecer, solfejando as flores, o caminho, a hora de saber e do fazer. Quantos jovens tombaram seguindo a canção, filha. Queríamos apenas sentir o hálito das flores, o vento acariciante da liberdade, a reza cúmplice da igualdade. Mas o egoísmo possessivo, sem rosto, de um tempo sem tempo, zumbis guardiães de um mal fluido, evanescente, sempre banalizado, incrustado no sorriso do lucro, no pranto das baionetas, ofertava-nos as trevas sombrias e o silêncio pacífico dos túmulos.

Esquecemos da Coruja de Minerva que alça vôo ao Crepúsculo, minha pequena, e o galo e a coruja precisam cantar em contraponto fugático e dialético, para que o conhecimento e a verdade avancem. Percebo agora, no limiar da minha caminhada crespuscular, entre os pios das corujas e os vôos rasantes dos morcegos, que existe uma lacuna, um abismo desafiador, entre o "querer ser" e o "pensar que já é", sendo que o primeiro é sublime e o segundo é o anúncio da tragédia, o eterno retorno às situações preconstituídas. E essa petulância vaidosa não fez que enxergássemos que tínhamos limites por estarmos inseridos como expectadores engajados, agentes e pensadores, prognósticos sonhadores e ao mesmo tempo, depositários de um passado escondido nas escuras e confusas brumas do inconsciente.  E o pior, amada filhinha, encorajados por um determinismo histórico, esquecemos as reflexões do profeta da racionalidade dialetica, dentre as quais, de que o Galo Gaulês anuncia o começo da luta de classe e não o festejo de uma vitória antecipada, pois em uma luta existe um adversário que vai defender os seus interesses com todos os recursos inimagináveis, não sendo incomum descobrirmos  que ele é uma persona poderosa em nosso Ser. Por isso, é importante desconfiarmos do nosso ódio nas pelejas de classe, pois nas nossas lutas internas, esse ódio pode revelar um caso conflituoso de amor.

Nesse seu caminhar na linha do tempo, confesso que você ultrapassou aos meus mais grandiosos prognósticos, com surpresas dissonantes que se não harmonizavam com meus acordes existenciais, no entanto, levaram-me às reflexões sobre as novas formatações da musicalidade da vida. É a velha e boa dialética, e quando não prostituída pelos pragmatismos maquiavélicos, é uma excelente companheira para toda a vida. Obrigado pelos novos ensinamentos, entre eles, que a dúvida é a matriz da filosofia, pulverizadora das certezas burras e dogmáticas, no entanto, sem cairmos na tentação das verdades relativas, oficiados por intelectuais que insistem na afirmação da não existência da verdade, mas de verdades subjetivas que devem ser harmonizadas no banquete do individualismo possessivo, da exploração e do lucro.

Por fim, nessa época das acusações cruzadas, das corrupções pragmáticas, das competições mais cruéis pelo Poder, obrigado por me ensinar com seu exemplo existencial, que os fins nunca justificam os meios, e quando isso acontece, os objetivos se perdem no nebuloso tempo, restando somente as areias movediças do pântano do passado, sepultando sonhos e fazendo sair da tumba, os vampiros sedentos de sangue.

Agora, entendo o Nazareno, querida menina, quando falou que não tinha família. Sou mais do que seu pai, um amigo fraterno, seu cúmplice dos desafios da vida que insiste e persiste pelos estofos dos sonhos.

Um grande beijo

Ivan Bezerra de Sant Anna 


Publicado no site http://www.facebook.com/ibezerra52; http://ibezerra.xpg.com.br e no Blog http://terradonunca-ibezerra.blogspot.com/