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sábado, 27 de junho de 2015

Deus dança...

Deus dança...


Nos primórdios da existência humana, três comportamentos ritualísticos foram essenciais para o desenvolvimento da coletividade humana: o sexo, os encontros  em volta da fogueira e a dança.  O sexo tão instintivo, natural, selvagem e prazeiroso, era a flecha do cupido, o toque do encontro de  Eros, o inicial prazeiroso toque entre o homem e a mulher. Naqueles idos remotos, antes do verbo, o princípio era o sexo, algo gostoso, inocente, o erótico sem culpas ou Édipos, sem o pecado das crenças, segundo as belas palavras de M. Béjart, "o erotismo é a vontade de negar a morte, a afirmação da vida. O erotismo pertence ao sagrado".

Veio o Verbo e com ele, o fogo das fogueiras, iluminando o entendimento entre as pessoas, tentando burlar a noite que avançava. Mal sabiam eles que as fogueiras serviriam para queimar pessoas, livros, calando as vozes do diálogo e dignificando as trevas. No entanto, apesar de tudo, a pureza das fogueiras primordiais, o fogo luminoso do entendimento, resistiu ao tempo, salvaguardado pelo desenvolvimento dialético. A velha fogueira, o centro de acalanto socializador, foi  guardado nas praticas tribais africanas e de maneira acanhada, nos festejos a São João. Onde estão as fogueiras juninas da minha infância, onde em sua volta havia milho, conversa e dança? E o céu junino, sem o tráfego congestionado pelos aviões do forró, era tracejado pelas multicores luzes dos fogos de artifícios?

Entretanto, a dança resistiu, apesar das coreografias ridículas, salpicadas por versos de um romantismo sem amor, das Bandas tipo "mulheres disso e daquilo", composta por mulheres que não conhecem o valor central da mulher no mundo e não passam de meros produtos do mercado sexual. A Quadrilha, herdeira das lindas cadências da dança francesa, associada ao nosso sensualismo brejeiro, hoje não passa de uma coreografia grotesca, um festival de roupas exóticas, uma suposta dança de pessoas fantasiadas de cangaceiros, uma elegia ao mau gosto e a história criminosa de um bandido sociopata.

A dança vale por si só, não sendo instrumento de realização de outros objetivos, a não ser estar em comunhão com o mundo, com o ritmo da existência. Dançando a dois em um xaxado ou em um prodigioso e alucinado tango, estamos em sincronia com o mundo em união com o Todo. Como dizia um velho mestre de Yoga, "a dança também é união. Você é dançarino. Shilva, o senhor do mundo, o grande yogi, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da dança... Você é dançarino, você tem sorte. Que sua dança seja sua yoga, não procure outro".

"Dançar é aprender o movimento dos deuses", disse Kishiro Matsumoto. Entre um rodopio e outro, de repente, um êxtase supremo, de duração ínfima, assim como um gozo do prazer amante, mas de profunda verticalidade em busca da radicalidade do Ser; um shamandi, onde o nada é menos do que nada, um falso vácuo que origina a grande aventura humana. Dançar à vida não é brincar de ser Deus, mas sentir a ideia de Deus como união de todos aqueles que, apesar das inúmeras diferenças, batem os pés no chão da igualdade solidária.

Eu não acredito em um Deus sério, moralista, que distribui punições e não sabe dançar. Prefiro um xaxado muito arretado, o milho pipocando na fogueira, pessoas rindo em sua volta, ao arrependimento penitente das missas ao domingo. Eu só poderia acreditar em um deus que soubesse dançar. E como falava Zaratustra, nas palavras de Nietzsche, "aprendi a andar, desde então, deixo-me correr. Aprendi a voar, desde então não preciso mais que me empurrem para mudar de lugar. Agora sou leve, agora voo... agora um deus dança em mim."

Ivan Bezerra de Sant' Anna