Normas programáticas ou programistas?
Estava no shopping em companhia do amigo Zé Rollete (aquele que nasceu na Praça da Bandeira em Milão) quando passou uma garota com um rebolado estudado usalmente para certas ocasiões, deixando-nos um convite para um show daqueles em que a dançarina começa vestida com austeridade vitoriana e termina como Eva, contorcendo-se em uma macieira. Outro amigo que estava presente e adora mostrar-se erudito, não perdeu tempo: "Essa garota é programática", exclamou com um sorriso vincado pelo orgulho. Zé Rollete que não perde um milímetro de oportunidade para chatear o nosso intelectual, disse: "Jumento, programática é uma garota que se chama Norma, anda com uma balança na mão e mora em um local chamado de Constituição. Essa que passou é programista". Nosso poeta não se dando por vencido, fulminou: "Dá no mesmo, otário. Essa que passou também usa uma balança para pesar o dim-dim de certos "garotos" que adoram passar a noite nas boites ouvindo as músicas bregas do José Augusto".
O tempo passou e em determinado dia encontrava-me frente a um televisor, quando apareceu Alexandre Garcia comentando sobre uma possível farra de liminares judiciais e sobre a tendência de jurisdicização da medicina. Segundo o comentarista, os juízes estavam expedindo liminares judiciais para compra de remédios em laboratórios, inclusive para medicamentos em fase experimental, sem a devida autorização da ANVISA. E mais: que determinado juiz tinha forcado a compra de medicamentos para oito pessoas que custaram aos cofres públicos a modéstia quantia de 40 milhões de reais! Que diabo é jurisdicização da medicina? Em primeiro momento tive um sobressalto, imaginando um juiz vestido de branco com um estetoscópio em uma mão e na outra um martelo. Os meus batimentos cardíacos foram para enésima potência, no entanto, respirei fundo e resolvi estudar o assunto com vagar.
Com o transcurso dos estudos, percebi que não corria o risco de me deparar com um juiz ameaçador, munido com um terrível bisturi (pelo menos, por enquanto) mas, no máximo, com um super secretário da saúde togado e mandamental. Ufa, que alivio; dos males o menor!
Por que os juízes estão se dedicando com entusiasmo crescente a uma função de gerenciamento de medicamentos? "Estamos cumprindo os artigos 196 e 197 da Constituição Federal. Se os administradores não obedecem, sentimo-nos na obrigação de subrogar", defendem-se os magistrados. Afinal, qual o conteúdo dessas terríveis normas constitucionais que sobrecarregam os pobres juízes? Vamos verificar:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Em primeiro lugar, assaltou-me uma dúvida: qual é o conceito de Estado definido pela Constituição Federal? O modelo jusnaturalista estruturado em uma dicotomia cidadãos versus órgãos burocráticos de coação ou o modelo hegelo-marxiano de integração dialética das dicotomias? Analisando algumas normas constitucionais em cotejo com o art. 1º e seu parágrafo único, não é forçoso concluir que o conceito de Estado Republicano Democrático brasileiro baseia-se em uma politischer Staat, uma sociedade política como estrutura coesiva e local de integração da coletividade, sob o genético comando dos cidadãos. É claro que por delimitação conceitual está presente em algumas normas constitucionais o conceito de bürgerliche Gesellshaft, local estruturado onde se movem os indivíduos como sujeitos privados em busca das suas realizações de caráter nitidamente privado.
Ora, não fica fácil concluir que esse conceito do Estatal contido no art. 1º remete à frase que o Estado é composto por todos os cidadãos com direitos e deveres? Não é evidente que a responsabilidade estabelecida no art. 196 deverá ser de todos os componentes da Estatalidade, principalmente das empresas médicas e laboratórios de remédios que são consideradas de relevância pública, regulamentadas e fiscalizadas pelo Poder Público, segundo o art. 197? Por que os juízes responsabilizam sempre os contribuintes, os reais pagadores dessa festa de liminares, quando existem empresas trabalhando sob o manto da Estatalidade que poderiam arcar com esses custos? Elas quando operam com permissão, regulamentação e fiscalização do Poder Público, produzindo bens e serviços de relevância pública, assumem as obrigações estatais, inclusive os laços de solidariedade para com a sociedade. Será que os poderosos juízes temem a classe dominante e por esse motivo reduzem propositadamente o conceito constitucional de Estado, definindo-o como Poder Executivo?
Em segundo lugar, não é discutível o caráter programático do art. 196 da Constituição Federal. Salvo alguns equívocos, a finalidade de uma norma programática por sua feição abstrata, vaga, indeterminada e principiológica é estabelecer objetivos, metas e são dirigidas como obrigações imposta à sociedade política. Apesar da grande maioria dos nossos doutrinadores pátrios defenderem a jurisdicização dessas normas, entendo ser elas normas políticas dirigidas a toda sociedade como parâmetro de julgamento político-popular. Infelizmente os nossos juristas que são desprovidos de uma sólida cultura democrática, reproduzem o arquétipo platônico do rei filósofo, defendendo a tese que os magistrados são contemplados por mentes racionais extensivas e consequentemente, devem subrogar à vontade dos atores representativos democráticos. Ou seja: retiram dos representantes populares suas indeclináveis competências legislativas e deliberativas e passam para funcionários públicos togados que, por mais relevantes que sejam, não são agentes políticos eleitos e fiscalizados pelos cidadãos através do voto. Isso não é usurpar?
Essas normas possuem a finalidade precípua de orientação ideológica, demarcando alguns limites espacial a ser preenchido pelo legislador e nunca pelo Judiciário. Não podem os juízes arvorarem-se em supremos guardiões dessas normas, pois "aos legisladores, não menos que aos tribunais, foi confiada a guarda de direitos constitucionais profundamente queridos.” – JUSTICE FRAKFURTER. Se as normas programáticas estabelecem de forma abstrata e vaga as metas e valores a serem alcançados, também não é menos verdade que as referidas normas remetem ao legislador e ao administrador para o preenchimento, esclarecimento e determinação concreta desses preceitos vagos e indeterminados, através de uma ampla prognose que envolve estudos multidisciplinares e um amplo debate com a sociedade.
Ora, o art. 3º, I, da Constituição Federal preceitua "construir uma sociedade livre, justa e solidária". Sob que prisma ideológico deve ser interpretada essa frase e quem tem a licença constitucional de fazê-la? Se "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente" é de evidência cristalina que somente os poderes eleitos poderão efetivá-los, valorando dentro do momento histórico o que a sociedade entende por "sociedade justa e solidaria", por exemplo. É usurpativo quando um Juiz (ou juízes) tenta impor seu ponto de vista ideológico, querendo moldar a estrutura social e Jurídica sob a égide de suas crenças e valores ideológicos.
Apegam-se os juízes à frase "a saúde é direto de todos" do art. 196 da Constituição Federal, entendendo que a palavra "direito" significa um direito concreto e autoaplicavel, tendo como consequência lógica o dever inafastável de efetivá-lo concretamente. Sendo uma norma programática, nenhum dispositivo integrante é autoaplicável, precisando que o legislador e o administrador procedam o preenchimento com uma prognose ampla, definindo qual a política de saúde pública e quais recursos financeiros são necessários para implementar essa norma orientadora, levando-se em conta as limitações econômicas e financeiras. Não é sem importância lembrar que mesmo as normas constitucionais não-programáticas, algumas delas são de eficácia limitada, sendo necessário o legislador efetuar a sua concreção para que tenham eficácia plena exigível.
Da mesma forma, quem deve efetivar concretamente o art. 196 da Constituição são o Legislativo e o Executivo, os poderes eleitos. Somente a Administração, com delegação do Legislativo, pode, através de ampla prognose técnica e científica, definir quais os medicamentos são prioritários para a comunidade, cotejando com os recursos orçamentários disponíveis. Quais os medicamentos, quantos hospitais, quantas escolas e quais os níveis de excelência, essas e outras indagações devem ser respondidas pelas autoridades eleitas, devendo o cidadão eleitor julgar e fiscalizar através do voto. O julgamento é político-popular e não jurídico, pois só julga quem tem o poder de escolher e de vetar democraticamente.
Quando os juízes, por intromissão e usurpação atende uma demanda Juridica de um indivíduo frente aos interesses da comunidade está privatizando o espaço coletivo das demandas públicas, privilegiando uma pessoa e causando prejuízos para as demais. Quando um juiz ordena ao administrador que custeie um tratamento médico para oito pessoas com o uso de medicamentos experimentais que não foram autorizados pela ANVISA, com um custo anual de 40 milhões de reais, está retirando os recursos financeiros que serviriam para comprar remédios importantes para a coletividade. Um juiz liberal para um mercado de saúde neoliberal. Quem ganha com isso? Umas poucas pessoas atendidas pelo "supermédico" togado, os laboratórios de medicamentos, as clínicas privadas de saúde e o ego vaidoso do "superpolítico", o paizão de uma comunidade relativamente incapaz.
Lembro-me do diálogo de Rollete com o Poeta. Ambos parcialmente estão certos. Tanto as normas como as garotas podem ser programáticas ou programistas. As normas serão programáticas quando cumprirem a missão de orientar, delimitar espaços de variações valorativos e ideológicos ou serão programistas quando servirem de objeto de uso para pessoas afirmarem seus egos lascivos, autoritários e possessivos. Uma dama de costumes fácies a serviço de indivíduos libertinos que controlam e manipulam as pessoas.
Ivan Bezerra de Sant Anna - escrevente programático.
Publicado no site http://www.facebook.com/ibezerra52; http://ibezerra.xpg.com.br e no Blog http://terradonunca-ibezerra.blogspot.com/
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