A dialética da gordura
Uma amiga, certa vez, falou uma sentença muito instigante e curiosa. Articulando seus lábios, emoldurados pelo seu rosto roliço, entalhado pelo artesanato das guloseimas, disse:
"As gordas engordam e emagrecem ao mesmo tempo", e ante a minha perplexidade, disparou: "elas engordam o corpo e emagrecem a carteira", trombeteou em um gargalhar discreto de fazer inveja ao Faustão.
Olhei para um lado e para o outro, almejando verificar o impacto causado daquela explosão comunicativa ante aos presentes na sala de alimentação do Shopping, o que se revelou desnecessário, pois a silhueta da amiga já demarcava uma referencia de localização privilegiada. Com a voz diminuída, perguntei se era o gasto com doces que emagrecia a carteira.
"Não é só isso, lindo", (adorei o lindo, pois gosto de pessoas sinceras) "as mulheres por se acharem ainda submissas, pequenas e patas feias, são muito ansiosas e depressivas, fatos esses que as levam ao consumo excessivo de comidas e às compras de bens desnecessários", disse, entre uma garfada e outra, em uma enorme torta de chocolate.
"Que fazer?", indaguei, com um sorriso de pudim de leite condensado. "Só um milagre, uma graça divina", ressoou com suavidade de um Trio Elétrico no Precaju, a voz da amiga. "A Marilena Chaui, quando cita Spinoza, está certa. O desejo domestica a Razão, transformando-a em uma serva obediente. Conheço um ex-operário que nunca quis ser rico, mas aquele desejo escondido lá no fundo da sua mente foi mais forte do que seus ideais projetados e, desde então, começou a colecionar terras e gado. Só a Graça enrijecida por uma vontade férrea pode salvar ele.", disse, com ares de Joana D'Arc dos trópicos aracajuanos, ao se deparar com uma fogueira junina.
"E a Razão não é a medida para todas as coisas?", indaguei, como se o Descartes aparecesse para comprovar a teoria da reencarnação. "Que Razão? Quais delas? Existem tantas, caro amigo. O que não faltam são as razões argumentativas. Comer ou não comer, eis a questão! Quantos argumentos terão para esse dilema. Entre comer ou não comer uma torta, existem muitas razões que a vã Razão desconhece, diria o grande escritor inglês. Uma Razão para ter Razão é preciso ter muitas razões e com elas aparece a maior dádiva da filosofia: a Dúvida. O melhor caminho para devorar uma torta é não ter dúvidas, é não pensar. Se penso e reflito sobre as diversas razões, acabo perdendo a fome. Não existe desejo ou tesão que resista a uma dissonância permanente. Se vejo um cara gostoso e desejo ser comida é melhor não pensar nas diversas consequências, pois, ao contrario, o tesão vai para o brejo. As crenças vivem do não-pensar. Se pensamos, a dúvida aparece; com a dúvida, os conflitos; e com os conflitos, a fé esmaece.”, disse a amiga, exalando um grande esguicho de conhecimento, como fazem os gigantes que cruzam os mares.
Fiquei silenciosamente observando a amiga devorar a torta. Naquele momento, ela não deveria estar pensando em nada, a não ser na fruição do seu desejo. No entanto, existem razões que sustentem o seu desejo, mas ela prefere não correr esse risco desnecessário, pois pensar é sempre perigoso. As razões argumentativas são, para os fabricantes dos desejos, assim como os princípios são para os juízes brasileiros, a matéria prima da fabricação do justo, que eles denominam de Razão objetiva de Justiça. Os publicitários, auxiliados por psicólogos e economistas, fabricam incessantemente desejos de consumo que encontram solo fértil, adubado por nossas carências emocionais. Os nossos juízes fabricam suas sentenças justas baseadas em uma suposta Razão universal para dissimularem suas preferências ideológicas, referendadas por uma crença ingênua no jusnaturalismo. Aos consumidores resta apenas consumir sem pensar. Se refletissem, poderiam perceber que as tortas nem sempre fazem bem a saúde e as guloseimas judiciais não passam de vistosos bombons recheados por desejos dos poderosos, ingredientes quase sempre violadores da Lei produzida pelo povo.
Essa minha breve divagação foi logo interrompida por uma amiga da minha amiga que, demonstrando interesse na conversa inicial e aproveitando-se do momento de silencio degustativo, disse:
“Amiga, onde vende essa torta Marilena Sapoti que você estava falando?”
Ivan Bezerra de Sant Anna
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