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quarta-feira, 4 de abril de 2012

Farone



Caro amigo:

Não sei se consegue ler essas "mal traçadas linhas", mas pela força do meu desejo e os imensos mistérios da existência, tudo é possível. Espero que esteja bem, alegre, pilheriando como de costume e que o seu novo caminho seja permeado com os trinados dos pássaros em revoada sob o manto diáfano das manhãs e que os contornos sinuosos das mulheres com os seus colos gentis sejam uma presença constante. Desejo-lhe uma versão do paraíso? Não é bem isso, Farone, mesmo porque não acredito em nenhuma religião e sempre achei a crença uma ferrenha inimiga do Pensar. No entanto, deixo-me acalentar com a idéia de um caminhar sobre uma linha do tempo infinita. Onde vai dar isso? Sei lá. Acho que o importante é a viagem, ou como você sempre dizia: viver é o que importa.

É bem verdade que nunca tive a oportunidade de conversar com você em suas diversas residências. Quando morei no Condomínio Morada do Rio, algumas poucas centenas de metros nos separava, no entanto, as inúmeras farras que lá acontecia eram obstáculos que não ousava transpor. Observava que nos fins de semana uma verdadeira procissão de carros se dirigia para a sua residência, pois os ocupantes dos veículos sabiam que iriam comer e beber gratuitamente. Era um homem generoso, gostava de estar cercado de pessoas e por essa razão assisti com muita tristeza como os seus amigos cachaceiros abandonaram-lhe quando passou por dificuldades financeiras.

Não sei se me considerava um amigo, no entanto, todas as pessoas boas e generosas são meus amigos e você está incluído entre elas. Uma certa vez perguntei-lhe se não tinha alguma mágoa das pessoas que lhe abandonaram. Lembro-me que riu e disse: "Faço porque gosto de fazer e isso me dá um imenso prazer. Tanto faz se as pessoas ficam agradecidas ou não". Assim era Farone quando da sua curta estadia nesse mundo que conhecemos. Gostava de vê-lo brincalhão, irônico, com uma resposta na ponta da língua, entretanto, entristecia-me quando verificava que suas mãos estavam trêmulas, imprecisas e mal podiam segurar um cigarro. A bebida que tanto gostava não iria lhe permitir uma caminhada mais longa sobre a linha tempo cronológica e existencial. Seus "amigos" cachaceiros e algumas pessoas querendo dirimir a dor da sua ausência dizem que você viveu o bastante e com muita densidade.

Será mesmo que viveu o suficiente, amigo? Não tenho duvidas que viveu com muita densidade, no entanto, viveu até a exaustão máxima das suas potencialidades? Você diria que não, pois por mais passos que deu sobre a linha existencial, nunca admitiria tê-los dado o suficiente. Algumas pessoas da sua convivência diária respondem de maneira afirmativa, mas como convivo com a duvida, a filha dileta do Pensar, não possuo uma resposta conclusiva para essa questão. Se recorresse às imagens do passado que mostravam você radiante, cheio de entusiasmo e sob o auspício de um copo sempre cheio, responderia que sim. Mas, ultimamente quando me encontrei algumas vezes com você, sempre acompanhado por suas filhas, com um bondoso sorriso sóbrio nos lábios e com os olhos cheios de esperança na sua sobrevivência, diria que não.

Faltaram os passos da velhice, aquele andar despreocupado sem compromisso com posses e desejos pessoais que só o avançar da idade pode propiciar. Mesmo que a maioria dos idosos não consigam perceber, tenho a mais ferrenha certeza que você conseguiria entender que a idade não lhe tiraria coisa alguma, mas lhe daria ampla liberdade para apreciar a beleza e a dor do mundo como espectador engajado, assim como uma criança observa o vôo do colibri, notando que a somatória dos novos detalhes fazem grandes diferenças. Como sempre teve olhos de criança descobriria que nessa idade devemos ser revolucionários desapegados, espectadores engajados, crianças com olhos curiosos e sonhadores inveterados. Essa faixa de idade nos libera para a imaginação, para o sonho, mas uma maneira de sonhar diferente, mesclando as nossas experiências existenciais contidas em nossos baús com os nossos atuais projetos imaginados. Finalmente, damos uma mão para Dionisio e a outra para Apolo. Uma certa vez estava assistindo um noticiário na televisão, quando a repórter enfocou um protesto público em um certo país. Em certo momento, o repórter disse que a sociedade estava protestando e qual foi a imagem que ele mostrou para exemplificar? Pessoas idosas que gritavam indignadas! Você imagina a força dessa imagem? Se a imagem fossem de jovens gritando, possivelmente os telespectadores pensariam: "isso é coisa da juventude". Mas a imagem de pessoas idosas protestando somente uma idéia ocorre: "a sociedade está revoltada".

Conheço um velho espanhol que adora beber café com conhaque. Os filhos reclamam que ele cada vez mais se torna irreverente, sátiro, irônico e criador de histórias improváveis. "Meu pai atualmente inventa historias fantásticas sobre seu passado que sabemos nunca terem acontecido, pelos menos com o esplendor que ele ornamenta", dizem rindo. O que os seus filhos não percebem é que o velho espanhol em decorrência da idade conquistou sua liberdade para ter olhos de criança e falar sem precisar prestar contas a ninguém. Ao remexer o seu baú existencial ele busca suas experiências vividas para mesclarem-se com seus sonhos, criando histórias que reúne a sua experiência passada com os seus novos anseios. Não são histórias inverídicas, falsas, mas baseadas em um realismo fantástico que mostram novas possibilidades e um novo mundo. Dessa forma, quando ele relata as suas lutas contra o franquismo não está inventando, pois esteve lá e viveu essa época, no entanto seus relatos nos dizem o que ele deveria ter feito se tivesse a coragem e a consciência que tem hoje. Suas historias não só relatam o passado, mas são prognósticos, são parábolas que apontam para o futuro. Uma certa vez, me disse: "Olha, falam que sou um irresponsável por dizer as coisas que digo. Entretanto, eles se enganam. Se não tenho mais responsabilidades com os desejos sexuais, com o consumismo de bens, com apegos às coisas materiais, isso não quer dizer que sou um monge louco ou um budista. Ao contrário, hoje possuo maior responsabilidade para com as pessoas que vivem em comunidade do que tinha antes. O que faço é tentar com minhas palavras despertar essas mentes adormecidas para que elas meditem e reflitam".


Lamento, amigo, por não ter tido essa oportunidade, mas tenho a absoluta certeza que iria aproveitar bem, pois as suas recentes publicações no Facebook levam-me a essa conclusão. No entanto, manter acesos os olhos de criança na fase adulta é um desafio permanente com riscos consideráveis, pois é estar sempre em estado de embriaguez com a vida que muda sem cessar. Muitas vezes embriagamos a nossa mente para não sentir a embriaguez da vida que tenta nos colocar em estado permanente de mudanças e mudar às vezes é muito doloroso. Não estou a lhe criticar, amigo, pois todos temos nossos vícios que, bem ou mal, dão um pouco de suavidade às nossas dores.

Devido aos mistérios do mundo, quem sabe não vai ter tempo de sobra para novas oportunidades? Apesar de não crer nos deuses, rezo por isso, amigo.

Ivan Bezerra de Sant Anna


Publicado no site http://ibezerra.xpg.com.br e no Blog http://terradonunca-ibezerra.blogspot.com/











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