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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Um homem sem qualidade

O homem sem qualidade.

A cidade de Itabaiana inovou. Que cidade arretada, falam uns; que sacrilégio, dizem outros, pois, não é para menos, a polêmica criada em torno da inovação de uma bienal de livros em um shopping center que teve como momento inaugural, a exibição de um filme sobre a vida gloriosa do Bispo Macedo, que, aliás, obteve uma grande estante, ornada com seu livro bibliográfico. 

Foi um salto corajoso dos organizadores do evento, admito. Fosse na Europa, os protestos seriam rumorosos, e mesmo na Terra do Tio Sam, um evento como esse não seria muito bem recebido, uma vez que os nossos irmãos do Norte são muito conservadores para certas coisas. Certo ou errado, o evento, segundo várias testemunhas, foi um sucesso de vendas, pontificando os livros de  auto-ajuda dos nossos psicólogos escritores - me ajude que lhe ajudarei -, e a apoteótica venda do livro do Macedo.

Apesar do nosso Ariano Suassuna está se remexendo no túmulo - ele era um radical -, uma importante indagação deve ser feita: “oxente, gente, por que não se pode fazer uma bienal de livros em um shopping? Que importância existe a ajuda financeira disfarçada da Igreja Universal, mesmo sendo o Peixoto do shopping, irmão do Padre Peixoto, católico ferrenho da velha guarda? Afinal, um livro não é uma mercadoria e os leitores não  são consumidores, a despeito das fronteiras ideológicas e nacionalistas?”

Para responder essas perguntas, nada melhor do que dois intelectuais ceboleiros, Antônio Samarone - o grande líder da expedição Serigy - e nosso Zé do Mercado, opiniões, que ao meu ver, entram em harmonia em alguns momentos, discrepam em dissonâncias, por vezes, mas elucidam, informam com substância.

Zé do Mercado, um socialista da velha cepa, descasca a cebola: 

“Inadmissível uma bienal de livros financiada pelo Capital evangélico, transformado os transmissores de cultura em meros objetos comerciáveis. Esse evento foi a demonstração clara da força da ideologia neoliberal, que transforma as pessoas em meros consumidores sem consciência dos seus papéis diferenciadores no mundo. Esses organizadores do evento, embora vestidos com o manto de divulgadores culturais, objetivaram tão somente a venda dos seus livros, uma bela coçada nos seus egos, usando os poetas populares, cordelistas e memorialistas ingênuos, como simples figuras decorativas”.

Já o nosso Samara, homem com refinamento filosófico, usa uma dialética senoidal - a dialética de picos alternantes -, possivelmente, quem sabe, influenciado pela filosofia do talvez de Nietzsche, um círculo de retornos de negações e afirmações.

No seu primeiro artigo, Samara cita Vargas Lhosa, Deneault e Robert Musil para defender a literatura crítica dos ataques da indústria do divertimento, ressaltando o seu medo ao medíocre, com a citação do Musil, conceituando a pessoa medíocre: “O que faz de melhor uma pessoa medíocre? Reconhecer outra pessoa medíocre. Juntas se organizarão para puxarem o saco uma da outra, vão se assegurar de devolverem favores uma à outra e irão cimentar o poder de um clã que continuará a crescer, já que em seguida encontrarão uma maneira de atrair seus semelhantes.”

Mesmo que em outro artigo posterior, nosso Samara enalteça “o espírito comercial aguçado” do povo ceboleiro, afirmando que “com jeito e sabedoria vende-se tudo”, o filósofo serrano nos legou belos momentos reflexivos, principalmente quando dá ênfase às palavras do Musil. É preciso entendê-lo em seus circulares eternos retornos, pois o nosso António Samarone é a versão ceboleira do Übermensch nietzscheano, um super-homem em busca do seu Zaratustra - espero que ele entenda essa afirmação como um elogio e jamais como ironia.

Samara é um espetáculo à parte - sou seu fã de carteirinha -, e mesmo premido ao elogio, algo dentro dele, leva-o à negação, não importando a ordem cronológica dos seus dizeres. É desta maneira que saboreio a sua citação do Musil sobre a mediocridade. Estaria ele a dizer que o nossos propulsores culturais se organizam “para puxarem o saco uma da outra,  se assegurando “de devolverem favores uma à outra e irão cimentar o poder de um clã que continuará a crescer”? Trocas de favores, premiações cruzadas, monopólio dos circuitos financeiros, criações indiscriminadas de academia de letras com escritores que mal escrevem um telegrama, não seria isso que o nosso Samara está a denunciar? O nosso grande ceboleiro não estaria nos dizendo que o lógico seria primeiro criar escritores para depois formar academias, pois, ao contrário, essas academias só serveriam para os interesses econômicos e devaneios vaidosos dos medíocres?

Essa bela reflexão do escritor Robert Musi, ofertado pelo nosso Samara, foi retirada das reflexões sobre o personagem Ulrich do livro “Um homem sem qualidade”, uma criação tão bela quanto complexa, uma obra que se rivaliza com Ulisses de Joice, quanto à complexidade das suas quilométricas páginas. No entanto, para o erudito e complexo Samara, nada melhor do que uma citação de um livro complexo que denuncia a crescente mediocridade no mundo. 

Ivan Bezerra de Sant’ Anna