A grande farsa
Não era uma decisão difícil, apesar de todas as consequências oriundas do tracejo da pena sobre o papel sentencial. Já decidirá outras sentenças semelhantes, e seus colegas, umas outras tantas, até mais extravagantes do que a que se preparava para decidir. Censurar leis; mandar a administração comprar medicamentos sem indicação orçamentária; colocar paraplégicos nas forças policiais; criar privilégios para pessoas em detrimento das cláusulas constitucionais que proíbem descriminação por raça e credo; são, dentre outras mais cabeludas, decisões interventivas e de caráter legislativo. Afinal, ele sabia que pertencia a uma elite de sábios que tinha a nobre missão de aplicar os princípios programáticos, e não era uma lei fabricada por um bando de corruptos, autorizado por uma população imbecil, que iria impedir que os mais sábios estabelecessem os critérios do verdadeiro critério de justiça. Platão sempre soube essa verdade eterna e essa história de Democracia é uma verdadeira farsa. Manda quem pode, obedece quem tem juízo!
Sabia que os magistrados cometem erros, mas erram como os deuses gregos, que erravam para acertar. Muitas vezes namorava com a depressão, quando certos intelectuais diziam que o Judiciário brasileiro assemelhava-se a um mercado persa, onde quem dá mais, leva. Que leviandade, pensou. No fundo, era um neoliberal que acredita que as colisões de sentenças díspares, leva a um resultado mais justo, em decorrência da mão invisível do mercado jurídico. Com um acesso de riso, imaginou o idiota do Karl Marx declarando que os magistrados obedecem à classe dominante. Coitado do judeu barbudo, se a alma dele se instalasse em um corpo de um brasileiro, perceberia que os magistrados são a própria classe dominante! Votos legitimadores do Poder? Quanta bobagem, para os juízes, mesmo os concursados, basta um ato de nomeação e uma caneta! Nesse ponto, os militares e os juízes são iguais, pois, fuzis e canetas somente diferem pelas circunstâncias, sendo iguais na busca da legitimação pelo procedimento.
Ele estaria cometendo um sacrilégio ao autorizar que um garoto que passou no Enem fosse aceito na Universidade? Estaria cometendo uma violação legal? Ora, seus colegas vivem interferindo nos critérios didáticos das universidade, quando reavaliam os resultados dos concursos, subsumindo-se como super doutores, como foi o caso de uma juíza que foi reprovada nas provas iniciais de mestrado e aprovada por um colega com nome de cantor de Ié-Ié-Ié. E por que não falar de um certo membro da Justiça que um juiz lhe permitiu ter o status de professor com dedicação exclusiva, quando o mesmo já era um dedicado membro do Ministério Público?
O seu caso era mais simples, pensou. Claro que esse garoto jamais entraria em uma universidade da França ou Alemanha, pois os magistrados desses países saberiam que essa decisão era privativa dos conselhos técnicos e didáticos dessas universidades, e somente em casos excepcionais, para garotos excepcionais, esses referidos conselhos autorizariam. No entanto, ele sabia que o ensino brasileiro era uma grande farsa, e que o Enem era uma verdadeira molecagem, onde não se avalia nada e o objetivo é permitir a entrada de todas as pessoas, utilizando-se de quotas indígenas, de quilombolas e dos "sem terras", com finalidade populista de propiciar grandes lucros ao setor privado da educação.
Esse garoto era um gênio? Ele sabia que no máximo, o garoto tinha uma boa memória para recordar o que, às duras penas, decorou. Mas quantas pessoas que passaram nessa prova ridícula, poderiam estar cursando uma universidade séria? Possivelmemte, quase nenhuma, refletiu. Então, por que impedir que esse garoto "genial" tenha acesso ao curso de medicina? Uma simples norma pode impedir que um Mozart da medicina possa surgir? Estava achando muito divertido toda essa paródia carnavalesca, e por que não rufar os tambores da bateria e deixar passar o bloco do populismo? E a lei? Ora, a lei é apenas uma lei! Ele sabia que a verdadeira lei sairia da sua sábia caneta, assentada por seus dedos rigorosos e justos. Então, com um leve sorriso matreiro nos lábios, o riso do Poder, ele decretou:
"... E de acordo com as provas e razões acima aduzidas, sentindo o aroma da cebola lacrimante, decreto que o requerente é um gênio precoce e deverá ser matriculado na Universidade Federal de Sergipe.
Cumpra-se. PRI"
Ivan Bezerra de Sant Anna