Natal do Tobias
Não é nostalgia saudosa de um passado, mas são pontadas da memória que insistem e persistem, transformadas e modeladas pelo presente. Lá está a velha Praça da Catedral, que depois de sucessivas reconstruções (cada Prefeito faz uma nova), resta apenas evocando sua história, a irremovível catedral católica. A velha praça já teve de tudo: um zoológico cercado por bambus, com Gansos e cisnes nadando no canal, preguiças que insistiam atrasar o tempo e macacos que faziam sucesso com a meninada com mãos de pipocas. Depois de algum tempo, a velha gruta das onças pardas, cedeu o lugar para a Cascatinha, local de encontro boêmio de todos amantes da noite, onde pontificavam com suas presenças, Bode da Cascatinha, Nega da Madruga, Rui Seixas, Zé Perigo, João Carlos Pé de Valsa e outros, não menos ilustres.
Em épocas natalinas - ao contrário dos anos recentes, onde a praça convive com a escuridão solitária - a praça enchia-se de pessoas de todos os níveis sociais, ao longo de quatro semanas. Cada pessoa caprichava na sua indumentária que, bem ou mal, refletia as suas posses, mas com o cuidado esforçado da novidade, da estréia, mesmo que fosse uma nova calça curta, roupa comum e necessária para demarcar a passagem hierárquica da meninice para a adolescência. Lembro-me que via com certa inveja, o Zé Rolette, ostentando a sua superioridade temporal, vestindo uma calça "boça de sino", de mais de dois palmos de boça, produzindo um certo comentário malicioso que ele tinha "surrupiado" a pantalona da irmã. Para não falar do elegante Marcos Fontes, futuro The Top's, que mesmo suando como uma chaleira furada, vestia uma camisa Bamlon com gola alta, daquelas que os nórdicos usam em seu rigoroso inverno.
Era um festival de disputas musicais, onde ritmos, melodias, formavam uma verdadeira engenhosa cacofonia, somente perturbada pelo apito do carrossel do Tobias que, muito tempo atrás, meu avô Juvenal Batista importou da terra do Tio Sam. Quem não se lembra do velho preto Tobias convidando a todos para uma viagem rodopiante de fantasias? O mais interessante é que esse carrossel, por ter sua origem no sul dos Estados Unidos, o negro Tobias foi concebido para ser apenas uma pessoa engraçada e solícita às crianças brancas que embarcavam na sua aventura giratória. Entretanto, em nossa terra de mulatos, que muito deles se acham brancos, Tobias era o personagem central, acenando e rindo, como se gargalhasse da imbecilidade histórica desses mulatos untados de pó de arroz. Onde se encontra atualmente o velho Tobias e seus cavalos deslumbrantes? Depois que foi comprado pela administração municipal, foi desmontado, roubado, destroçado pelos desonestos cultores da modernidade, assim como fizeram com os antigos casarões, embebidos de histórias e tradições. Éramos jovens e modernos, e nem por isso deixávamos de gostar do velho Tobias. Vivíamos em uma sociedade que teimava manter seus valores, e a idade quando avançava era a justa medida da responsabilidade e prestígio. Quem podia confiar em um jovem, naquela época? Somente a idade podia trazer confiança, responsabilidade, e a nós restava uma liberdade irresponsável, típica das crianças imaturas, mas não menos vigiada. "Deixem os garotos, pois com a chegada da idade, tudo vai ao seu lugar", diziam, alguns patriarcas tolerantes. Mesmo sem sabermos que os limites devem existir para serem ultrapassados, nós quebrávamos barreiras, ensaiando um tímido grito primal do rock, lendo livros proibidos, e com certo temor, erguíamos o punho esquerdo para o alto, e com o direto, tocávamos uma memorável punheta, ato necessário e saudável, impulsionado pela ausência das mulheres, reprimidas e mantidas à distância.
E a festa do Natal da praça era esse constante exercício de alegria, liberdade, diversão, que se fazia de tudo, menos rezar, pois tínhamos a saudável intuição que o festejar do nascimento de uma criança era motivo de alegria, não de chorosas rezas. Na praça tudo acontecia, com padrões variados, desde desfiles de moda, paqueras, namoros, jogos, diversões, discussões acaloradas, até duelos de grupos rivais que resolviam suas diferenças em uma saudável troca de socos. Entretanto, a praça não era tão igualitária quanto as diferenças sociais, pois na área do fundo da catedral, concentravam-se as pessoas humildes, receosas pelo contato próximo com os "bem nascidos", comportamento típico daqueles que infelizmente sabem o seu lugar. Apesar disso, a praça era um espaço heterogêneo de criatividade alegre, ao contrário das festas atuais nas ruas e praças, onde prepondera a homogênea massa, separada por cordões de isolamento dos "bem nascidos", conduzida por um hipnótico Axé ou um forró estilizado, para o crescente lucro de empresários gananciosos e sem escrúpulos.
Perto do Cachorro Quente de Seu João (não tinha Macdonald igual!), era o lugar onde ficava o guarda civil Carlos, um morenão bonachão que usava um cassetete de borracha como enfeite. Gostávamos de conversar com ele, e de vez em quando, levávamos refrigerantes para ele. Em uma dessas ocasiões, em plena noite de Natal, perguntei se ele não gostaria de passar o Natal com a família, em vez de estar em uma praça. Ele abriu um largo sorriso e disse: "por acaso, Jesus comia peru e tinha casa? Não eram as praças, as ruas, a sua casa, e o povo que o acompanhava, sua família?" Na época, achamos estranhas suas palavras, mas olhando hoje para a praça da catedral, envolta em uma escuridão, atenuada por lâmpadas que tentam compensar a ausência de luz, percebo que o velho Natal do Tobias se foi para sempre, restando um Natal privatizado, isolado, circunscrito a uma mesa com um peru em cima, sob os olhares gulosos de poucas pessoas, denominadas de familiares. Algumas rezam antes do banquete e pedem que Deus esteja presente. Ele possivelmente pode estar, mas como disse o Nazareno, "eu não tenho família. A minha família são todos vocês". Verdade, Mestre, e de preferência, todos reunidos em uma praça, em estado de alegria, ouvindo o apito do Tobias.
Feliz Natal
Ivan Bezerra de Sant Anna