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sábado, 24 de dezembro de 2011

O menino do mundo

Menino do mundo




Tantos anos se passaram, mas para mim é como se fosse hoje. Na minha idade a lembrança é como o meu cachorrinho Lalau que brinca de se esconder, indo e vindo quando quer, mas, volta e meia ele está ao meu lado com um olhar de político evangélico. É um bom cachorro, mas cheio de vontade, malcriado, igualzinho ao finado meu marido, José. De uns tempo para cá, Lalau tem sido minha única companhia nessas brenhas em que vivo isolada. O lugar é tão danado que colocaram o nome de Rasgo da Vilma em homenagem a uma libertina famosa que viveu e fez fama na região. No entanto, gosto do lugar, das suas cores selvagens, do calor do dia e do frio da noite, não me sinto sozinha, mas abraçada pelas pessoas ausentes, pelos fantasmas que sempre estão presentes. Ah, ia me esquecendo do cavalo Rolete. Etâ, cavalinho marrento! O danado que tem mais idade do que piolhos "bolsistas"que passeiam nas cabeças dos meninos da região, no entanto, ao ver uma égua nova o desgraçado fica todo sibite, relinchando de um lado para o outro. Só vejo tamanha alegria quando ele escuta na feira da cidade as músicas de Amado Batista.

Como estava falando, a minha memória ia ficando rebelde na medida em que cresciam os meus cabelos brancos, porém, o que vou contar, lembro-me como se fosse hoje. José, meu marido, era muito mais velho do que eu, mas, na época, uma menina distinta que estava beirando aos dezessete anos não podia escolher marido. Isso era tarefa dos pais que não abriam mão dessa escolha, consequentemente, determinavam como seria a felicidade das suas inestimáveis filhas. José era um homem tosco, quase analfabeto, mas era um bom homem. Possuía um coração de ouro e tentava me agradar de todas as maneiras, sem falar na sua generosidade reconhecida por com todos os necessitados. Eu possui a sorte de ter um tia solteirona que era professora que me ensinou a arte da boa escrita e passear com muito prazer nos livros emprestados, doados ou surrupiados. No entanto, com tanta cultura, nunca consegui presentear José com um filho que tanto queria. Coisas da natureza.

Fazia três meses que me encontrava hospedada no sítio de uma tia que morava no Sul, pois estava me restabelecendo de uma enfermidade e José achou por bem que viajasse para lá. "O clima vai lhe fazer bem", falou, ordenando-me que partisse. Um dia, bem cedinho, ouvimos um choro insistente de uma criança que descobrimos ser proveniente do estábulo. Era um recém nascido lindo e vermelhinho de tanto chorar. Meu coração raciocinou sem atropelo e voltei para a companhia de José com o rebento no colo. "Mulher você é doida de pedra", me recepcionou, José, com seu rosto de caatinga e sorriso de mel. Logo que desci da marinete, foi a vez dos olhares populares do tipo "foi ter o filho fora", para logo após mudarem para olhares "quem foi o pai", e antes que aparecesse um "mau olhado", disparei: "Foi um milagre; obra do Espírito Santo".

O moleque foi batizado com o nome de Messias de Araújo, nome que José insistiu com muito vigor, apesar de ter preferido um mais charmoso, originado das minhas leituras. Messias cresceu com doçura e firmeza, ajudando a José nos trabalhos do campo e a noite aprendia a ler e escrever ouvindo as minhas histórias. Sempre ouvi o ditado popular que um abandonado sempre abandona as pessoas, no entanto, Messias nunca se sentiu abandonado e nunca abandonou ninguém. Desde de pequeno acreditava ser uma pessoa especial, constatação essa que não o fazia abrir em leque as suas penas e inchar o peito como um pavão, mas ter um crescente peso da responsabilidade para com os outros, como um Guará alfa em relação a sua matilha. Foi essa especialidade que o fez crescer o cabelo, colocar barba, usar uma bolsa de couro à tiracolo, devorar avidamente livros com capas vermelhas e chamar todas as pessoas de camaradas. Mas, nem todas as pessoas gostavam de ser chamadas por esse nome, como, por exemplo, os coronéis da região, o juiz, o promotor, o padre e os políticos importantes da região. Camarada como sinônimo de amigo, eles ainda suportavam, mas quando essa palavra se associava à frase "a terra é para todos", a jagunçada dos poderosos caía de pau, matando até os passarinhos de cabeça vermelha.

Um dia fui à feira com José e encontramos com o juiz e o promotor que estavam comemorando o recebimento de um vultosa quantia, uma tal de verba indenizatória que as más línguas chocalhavam dizendo ser dinheiro surrupiado do povo. Eles estavam com bom humor e quase embriagados, mas não perderam tempo; ameaçaram Messias. José que de manso não tinha nada, disse: "Diga aos coronéis que José não tem medo de nenhum macho vivente". Eles conheciam o passado de José e ficaram em silêncio. Uma semana após, o silêncio foi quebrado por uma saraivada de tiros. Enterramos José na sombra de um Jequitibá, na terra que ele tanto gostava e que sempre afirmava que um dia descansaria abraçado por ela. Meu bom José descansou, pois de uma forma ou de outra, todos descansam.

Messias depois desse trágico acontecimento nunca mais descansou. O pároco da região cansado e assustado pediu para ser removido e o seu lugar foi ocupado por Frei Antônio que gostava de repetir as frases de Cristo e imitá-lo na sua preferência pelos despossuidos. Como as beatas de sacristia eram ligadas às esposas dos homens poderosos, defendiam com muita garra que essas histórias de rico não entrar no reino do céu e o milagre da multiplicação dos pães e peixes só tinham vigência na Galileia. Assim, como moravam em outro local e em outra época, resolveram invadir a sede da Igreja em nome de Deus e expulsaram o padre satanás. A Arquidiocese protestou junto ao Judiciário que prontamente negou o pedido liminar de reintegração e com toda a velocidade de um cágado, começou a instruir o processo. Frei Antônio que estava sem eira nem beira, resolveu que sua casa devia ser intinerante, um dia na casa de um, outro dia na casa de outro, fato esse que elevou o religioso para o patamar de Pastor de todas as almas pobres e viventes. O tiro tinha saído pela culatra, pois a maioria da população se reunia nas missas das catacumbas, enquanto apenas meia dúzia de pessoas iam à sede a Igreja ouvir as lamúrias odiosas das beatas carpideiras.

Messias ajudado por Frei Antônio tornou-se uma liderança incontestável do crescente sindicato rural que, cada dia que passava aumentava seu prestígio na região, tendo sua fama alcançado outras searas e rincões. Os poderosos sabiam que deviam fazer alguma coisa e fizeram. Trabalhadores eram espancados, algumas casas eram queimadas e duas importantes lideranças sindicais foram mortas na calada da noite. Messias vivia se escondendo como um camaleão de caatinga, mas o meu coração de mãe cada dia que passava ficava mais apertado. Não tinha laços sangüíneos com Messias; tínhamos afinidades dos corações e um sabia quando o outro estava deixando de bater.

Em um dia obscuro que a lembrança embaça, o coração do meu menino parou de bater. Juntei o que restava do seu corpo com a intenção de enterrá-lo na sombra do Jeuquitibá, junto com seu pai José. Entretanto, percebi que seu lugar era o Monte Grande, lugar onde deu o último suspiro. Messias não era nosso; era do mundo. Nunca disse a ninguém onde ele estava enterrado porque queria evitar que fosse canonizado pelos crentes desesperados e com isso aparecessem as romarias e o pior: falassem palavras que nunca disse e matassem outras pessoas em seu nome.

Hoje é natal e isso me faz lembrar o menino do estábulo que coloquei nos meus braços. José gostava do Natal e ficava com a cara de Papai Noel do agreste toda vez que dava um presente a Messias que lhe abraçava com entusiasmo. Meus queridos se foram e estou terminado a minha caminhada por esse mundo de Deus. Espero encontrá-los seja lá onde for. mesmo que seja para um breve aceno e um olhar infinito de amor. Já consegui perdoar os seus algozes, pois, no fundo, eram tão pequenos. Eles não sabiam o que faziam em decorrência de terem grandes egos inflados pelo egoísmo e pequena dimensão da comunhão divina. Nesse natal percebi com clareza uma coisa: sempre vai existir um menino da manjedoura que vai lutar pelos humildes e morrer por mãos ávidas pela posse, movidas por corações egoístas. Messias era irmão de coração do menino da manjedoura e ambos eram meninos do mundo.

Boa caminhada, meu filho

Feliz Natal

Ivan Bezerra de Sant Anna


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