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sábado, 16 de junho de 2018

Minha namorada



Os anos passam e repassam as nossa vidas, levando muitas coisas e trazendo outras tantas. Muitas vezes só observamos as que foram, mergulhados  em um saudosismo de uma época,  de egos de ilimitados brilhos, dos Aquiles sem calcanhares feridos, que nem o céu era limite do limite. E por incrível que pareça, a seta dos anos que alvejaram o meu calcanhar, uma dor lá e outra cá, me dizem: agora você é mais livre, agora pode voar nas asas do sonho,  flanando, flutuando, vendo a beleza passante, chutando os baldes da hipocrisia, mostrando aos jovens a sua juventude destemida, encardida pelas lágrimas negras dos sonhos ufanistas que foram desfeitos pelo vendaval da vida vivida. No meu corpo, as marcas do tempo, limita o andar orgulhoso de um semideus, mas a humildade que me faz olhar as estrelas, desamara o meu baú dos sonhos e liberta as palavras sufocadas por amarras que pensava por ingenuidade não ter.

Sabem de uma coisa, amigos? Mesmo sabendo que o dia dos namorados é uma invenção comercial, uma boa dose de ritualização e simbolismo não faz mal a ninguém. Precisamos de rituais, e acho o ser humano é um bicho ritualizado por essência. Entretanto, como a minha coleção de anos não é nada atrativa para as ninfas e sereias do pedaço, e também para purgar uma compulsão irresistível por mulheres mais novas, resolvi namorar uma anciã de idade indefinida, mas de um fascínio exuberante. Por favor, não se apressem no pensar que estou apaixonado pela morte, pois apesar do seu insistente flerte e dos mistérios fascinantes que me oferece, desde que pisquei os olhos para o mundo lhe disse, reiteradas vezes, que sou ainda muito irresponsável para  assumir um matrimônio de tamanha grandeza.

A minha namorada é Brasileira, uma morena com mais de 500 anos registrados, e uma infinidade de séculos sem alguma notação. Já lhe deram o nome de Santa Cruz, Brasil, mas como a vejo como uma linda mulher, chamo-a de Brasileira, um nome que faz jus à sua sensualidade agridoce. Não lhe chamo de mãe-pátria, pois não sou e nunca serei seu filho, contentando-me deliciosamente em ser seu namorado, flanando com meu olhar às suas curvas lindamente sinuosas, sem algum sentimento de propriedade ou posse, mesmo que precária. Que corpo lindo você tem, Brasileira! Que pés formosos que pousam suavemente no Atlântico, recebendo as águas dos seus caudalosos rios que brotam do verdor das suas coxas, do seu umbigo, dos seus seios atrevidos, e das suas volumosas nádegas,  enxertadas pela contribuição dos seus filhos da África, compulsoriamente anexados pela nefasta escravidão.

Não é por ciúmes, pois sabe que não alimento esse sentimento de insegurança, uma vez que considero a liberdade da mulher para o prazer, na exata proporção do seu grande amor, mas desconfie daqueles que lhe chamam de mãezinha amada, pátria adorada, porque essas palavras escondem as relações incestuosas que eles sempre tiveram com você. Está esquecida da triste referência da sua cidade-umbigo, a cidade de Salvador, que fez Gregório de Matos declarar que “de dois efes se compõe está cidade, a meu ver: um furtar, outro foder”? Me desculpe por lhe falar isso, mas seus “filhinhos” que foram acolhidos por você só queriam seu dote e lhe foder. E para realizarem essa proeza, ao longo do tempo, criaram representações políticas sem representados, leis e juízes sem justiça, e por fim, como papagaios imitadores das vozes do além mar, criaram uma República sem republicanos.

E com o passar dos séculos, minha querida, a coisa só piorou. O tacape e a tapeação se alternam nesse teatro de falsidades, encenado por seus “filhinhos” edipianos, narcisistas egocêntricos, que a única medida de sociabilidade conhecida é reflexo distorcido dos seus rostos espelhados. Para isso, eles criaram Constituições cidadãs sem assembleias constituintes, verdadeiras cochas de retalhos que albergam interesses escusos, e um Judiciário de juízes que não obedecem à lei, ou pior, nem a eles mesmos, que escudam interesses de possessividade corrupta e partidária. E seus outros filhos, amada, aqueles que são verdadeiramente seus filhos, vivem morrendo nas filas dos hospitais, comendo os restos que sobram dos faustos banquetes dos seus incestuosos “filhinhos”.

Ah, namorada minha, não me peça para participar de um sistema eleitoral vigiado por censores judiciais, com Partidos que nada representam, um jogo de cartas marcadas que trocamos seis por meia dúzia, onde a compra de votos e um processo eletrônico já antecipam o resultado. O meu lugar é nas suas ruas, espaço  dos seus poetas apaixonados com seus versos pungentes de dores e esperanças, homenageiam sua essência de mulher, mãe, e a deusa Afrodite da humanidade. Sei que as suas ruas acolhem as dissonâncias das ideias divergentes, as lutas ferozes pela sobrevivência dos interesses, mas o que fazer se um ministro judicial diz que nada obedece, a não ser a sua consciência? Nesse caso, minha querida, só nos resta vivenciarmos a face genética, indomável, indefinida, da sua filha maior, a Democracia das ruas. 

Quem sabe, meu amor, em um certo dia, seus “filhinhos” incestuosos e corruptos sejam apenas uma triste lembrança, e que suas ruas sejam povoadas por pessoas, todas com inúmeras diferenças, mas, ao mesmo tempo, buscando acordos que harmonizem as necessárias dissonâncias, construindo, dessa maneira, um espaço de convivência pública, digna de uma verdadeira República.

Ivan Bezerra de Sant’ Anna


Publicado no site e no Blog http://terradonunca-ibezerra.blogspot.com/.