Nêga Maluca
Algumas pessoas contam e juram que é verdade que uma determinada senhora da nossa sociedade, em um determinado estabelecimento doceiro muito freqüentado pelos apreciadores de guloseimas adocicadas, fez um estranho pedido: "Por favor, quero um bolo afrodescendente com distúrbios psiquiátricos". A atendente, para lá de perplexa e tentando conter o riso moleque que teimava sair, disse: "Senhora, não temos tal bolo". "Que é aquilo, menina? Quer brincar comigo?", exclamou com indignação a jovem senhora, apontando para um bolo pretinho na prateleira. "Senhora, aquele bolo é conhecido como Nêga Maluca e não sabia que sua origem era africana".
Engraçado, já comi esse bolo e nunca soube da sua origem africana, bem como, jamais me senti ofendendo alguém que possuísse uma pele mais escura que a minha. Sempre escutei a música "Upa Neguinho" principalmente com a belíssima interpretação da Elis Regina que, em outra música, fraseava com talento: "Nêga do cabelo duro/qual é o pente que te penteia...". Nunca percebi nenhuma ênfase racista na divina interpretação da Pimentinha e por gostarmos dessas musicas nem eu, nem a talentosa artista, estaríamos enquadrados no rol dos racistas pecaminosos. Pelo menos naquela época....
Como naquela época era quase unanimidade que o escritor Monteiro Lobato estava entre os maiores escritores de literatura infantil do mundo e nenhum critico literário via nas referencias descritivas de Tia Nastácia, frases racistas, com intenções difamatórias à raça negra. Muito ao contrário, seus livros eram tidos como subversivos, com fortes conotações de sociabilidade, e impregnados de apelos à solidariedade que, segundo a Direita fascista, "eram livros que pregavam o comunismo para as indefesas crianças brasileiras". Coitado! Era sua sina ser perseguido pelas hostes fascistas, queimadoras de livros e protetoras das nossas criancinhas que, com o passar do tempo e com a influência do nosso brasileiríssimo camaleão, transmudaram-se de "camisas pardas" para "peles pardas".
E como aconteceu essa mágica transformação? De repente, o grande escritor revolucionário se transformou em um pecaminoso racista, tendo seus livros proibidos nas escolas publicas, segundo parecer expedido pelo Conselho Nacional de Educação, acolhendo uma reclamação do ministro da Secretaria de Igualdade Racial que considerou o conteúdo da obra de Lobato, "racista e perverso". E como um passe de mágica - e tudo é mágico nesse país - apareceram "sociólogos apardeados", "companheiros pesquisadores", todos raivosos, marchando, hasteando bandeiras e com feixes de lenha nas mãos para alimentar a grande fogueira da Inquisição Parda.
O que foi que desencadeou essa fúria "fogueiral" das elites pardas companheiras? Ao que parece, umas cartas pessoais de Lobato que contém algumas referencias racistas. Ora, e daí? Não se deve esquecer a grande lição de Otto Maria Carpeaux que, recorrendo ao auxilio prestimoso de Karl Marx, dizia que nunca se devia confundir a personalidade empírica, com a personalidade artística e criadora de um musico, escritor, pintor ou qualquer criador de artes. Deveríamos proibir a leitura das obras de Aristoteles, por ser ele defensor da escravidão? Lançar os grandes romances de Honoré de Balzac às fogueiras purificadoras, porque o referido escritor era um defensor da monarquia deposta e decadente? Proibir as apresentações públicas das óperas de Wagner, porque o mesmo era racista e sua obra foi usada na propaganda nazista? Proibir que sejam tocadas as brasileiríssimas musicas de Heitor Villa-Lobos, em decorrência do compositor ter sido propagandista da Ditadura Vargas? Riscar do mapa literário o livro Casa Grande e Senzala, do sociólogo Gilberto Freire, pela referencia de uma suposta conciliação das raças, danosa à consciência negra? Lançar no Índex dos livros proibidos, as poesias do poeta americano Ezra Pound; os romances magistrais do francês Louis-Ferdinand Céline, porque ambos eram defensores da idéias da supremacia racial branca? A lista desses artistas "reacionários e racistas" é longa e sempre vai existir algum critico "apardeado" que vai ler, escutar ou imaginar frases "racistas e perversas" nas obras desses ilustres artistas, influenciado por suas existências empíricas, ou, na maioria das vezes, pressionado por seu "ódio de classe", por seu complexo de "branquidade", como dizia o saudoso Darci Ribeiro. Consciência de classe e étnica é outra coisa, camaradas!
Não se combate o preconceito racial com marchas raivosas dos "peles pardas"; com fogueiras purificadoras; dando a medalha Marchado de Assis ao semi-analfabeto Ronaldinho Gaúcho; colocando Lázaro Ramos como galã de novelas; criando "bolsas raciais", pois tudo isso não passa de variadas mentiras populistas, tão ao gosto de nossas elites desonestas e reacionárias. O Sr. Lázaro Ramos não é galã nem aqui, nem na África, assim como o fabuloso ator branco, Procópio Ferreira, nunca o foi. O Sr. Lázaro é feio e não é a Rede Globo que vai tentar criar uma beleza "politicamente correta". Aliás, esse termo me provoca arrepios. O que é uma coisa politicamente correta? Na Alemanha nazista era tudo aquilo que o Partido Nazista não proibia, sendo a desobediência penalizada com a internação nos campos de concentração. No Brasil dos companheiros é tudo aquilo "que é e não é"; é o eufemismo em lugar do conceito; é a mentira velada, mascarada e deslavada.
Assim, em vez de pardo, moreno, mulato, temos que dizer "afrodescendente". Ué, não somos todos afrodescendentes? Existe algum brasileiro que não seja afrodescendente? E se somos, como criar um diferenciador para fins de indentificação e aplicar critérios para fazer jus às cotas raciais, por exemplo? Afrodescendente ("branquinho", "escurinho", "mulatinho")? E quando formos comprar feijão, aquele mais escuro que chamávamos inocentemente de mulatinho, vamos ter que pedir feijão afrodescendente? E o conceito da física ótica que diz que o negro não é cor, mas a ausência de todas as cores, deve perder a validade cientifica porque não é politicamente correto e se constitui numa afirmação "racista e perversa" à dignidade negra?
Perdoem-me a ironia, mas esse País é uma piada grotesca. Uma República de mentira. Nunca ouvimos os sons da Marselhesa, mas os sons marciais das fanfarras, misturados com os batuques dos tambores dos terreiros. Uma Republica que nasceu de uma cavalgada, sob o rufar dos tambores marciais e se mantém estribada em pilares autoritários, disfarçados num populismo nefasto. Enquanto o CNE proíbe que os livros do maior escritor de literatura infantil do Brasil sejam distribuídos nas escolas públicas, o Governo compra milhares de exemplares da Nova Gramática Companheira, obra escrita por companheiros cor-de-rosa, ensinando para as crianças brasileiras que escrever "nóis vai" é a melhor maneira de desenvolver uma nova língua democrática. E que democracia!! A democracia da liberdade de opinião vigiada, ora pelo Judiciário, ora pelas hostes fascistas dos "peles pardas", encastelados nos órgãos governamentais. Uma democracia que os governantes não respeitam os tratados que assinam, deixando em liberdade um assassino que atentou contra o Estado Democrático de Direto Italiano e os senhores ministros do STF lavaram as mãos, emitindo um acórdão conivente: "Isso não é conosco". Entretanto, quando se tratou de gerar despesas estatais para para custear os casamentos homossexuais, os nossos ministros legislaram e desrespeitaram a Constituição Federal, afrontando o principio da separação dos poderes. Que coisa!! Que República!!
Enquanto isso, aquela senhora politicamente correta que fez o estranho pedido na casa de doces, já com seu bolo afrodescendente nas mãos, dirige-se para o seu belo e luxuoso apartamento. Ao chegar, a senhora que ostenta um discreto broche do Partido Cor-de-rosa, entrega seu precioso bolo pretinho para sua empregada afrodescendente que prontamente se dirige para o elevador de serviço. A regra do condomínio que proíbe a empregada afrodescendente fazer uso do elevador social, bem como o uso da piscina, não ofende à dignidade da raça negra, pois é uma simples questão de classe social - cada um em seu lugar. O problema racial não está em um salário irrisório, nas restrições impostas por regras condominiais, ou na atenção exagerada que a policia dedica a esses servidores pardos, morenos ou pretos. O problema se encontra no Sítio do Picapau Amarelo com Tia Nastácia e seu vocabulário debochado; no Saci Pererê andando em uma só perna; na engraçada boneca Emília e na Tia Benta. Mas não se preocupem: os "peles pardas" em constante marcha cívica vão jogar todos esses personagens na fogueira da Santa Inquisição, protegendo, dessa maneira, os nossos indefesos Pedrinhos e Narizinhos. No entanto, quem os protegerá das Cucas se os personagens do Lobato virarem carvão? Olha que as Cucas não moram somente no campo da ficção do Sítio do Picapau Amarelo. Eles são demasiadamente reais e de vez em quando atendem pelos nomes de Antonio Gomes da Costa Neto, Eloi Ferreira de Araújo e outros que integram o Conselho Nacional de Educação.
Ivan Bezerra de Sant' Anna - Afrodescendente branco.
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