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sábado, 21 de novembro de 2015

Sou um advogado?

Sou um advogado? 




Uma carteira me faz um advogado? Olhando bem, nem isso é verdade, pois faltando duas horas para a regularização dos débitos passados, que me permitiriam exercer o meu direito de voto, recebi uma ligação telefônica de uma atenciosa telefonista, informando-me que deveria ir a OAB imediatamente para efetuar uma regularização de um débito que não sabia existir. Imaginem a situação: deveria sair da minha residência às 22,30 hrs, percorrer caminhos noturnos, iluminados pelos olhares gatunos, para regularizar o que pensava estar regularizado. Apesar de me achar um homem destemido, confesso que fiquei paralisado ante a possibilidade de me deparar com os "amigos do alheio", e segundo um conhecido ditado popular, "um gatoso tem medo de um gatuno guloso".

Assim, encontro-me em uma situação macunaímica, uma típica esquizofrenia nacional, de ser e não ser ao mesmo tempo, coisa que faria Hamlet correr alucinado pelas escuras florestas inglesas, mas como convivemos diariamente com os Sacis Pererês, as Mulas Sem Cabeças e os Lobisomens, sempre encontramos um refúgio seguro para a nossa precária sanidade, ao lado da carinhosa Dona Benta, nesse exuberante sítio do Pica Pau Amarelo.

Dessa maneira, caros leitores, preferi continuar a minha infrutífera tentativa de ferir um papel virgem com palavras, frases e parágrafos sedutores, tentando, com enorme esforço, evitar a tentação ao estupro  consentido pelo passivo pergaminho. Talvez a palavra estupro não seja a mais correta, e poderia substitui-la pela grinalda do disfarce que usou Morgana para fazer sexo com Arthur, o Rei de Camelot. Ah, os disfarces, as máscaras, as personas... Isso é tão genuinamente brasileiro... "Mudar para que nada mude", parece até  que Lampedusa nasceu no Brasil... Nas farinhas do mesmo saco, os mutantes e ferozes gorgulhos mudam apenas de peso, impulsionados por uma insaciável fome divina. Quanto material para um bom romance... No entanto, deixo-me levar pelo influência soturna de Fiodor Dostoievski e pelas reflexões faustícas do grande Thomas Mann, percorrendo os insondáveis labirintos da mente humana. 

Em Recordações da Casa Mortos, o grande romancista russo e antecipador da Psicanálise, disse que "a falta de liberdade não consiste jamais em estar segregado, e sim em estar em promiscuidade, pois o suplício inenarrável é não se poder estar sozinho". Concordando  em parte, sinto-me confortável acariciando as minhas memórias de uma época que os advogados procuravam o reconhecimento pelo seus trabalhos nas salas de audiências, nos debates dos Tribunais de Júri e nas difíceis lutas pela emancipações dos direitos dos trabalhadores, entendendo que éramos apenas coadjuvantes de uma luta que tinha como verdadeiros protagonistas, as lideranças trabalhistas.

Só em pensar estar "fardado", urrando palavras de ordem, acompanhado por uma legião de "Datas Vênias", sinto a bofetada horrenda da promiscuidade coletiva, a ausência da liberdade do pensar, encarcerada pelo pensamento monolítico das turbas, comandadas por lideranças egocêntricas e com objetivos secretos inconfessáveis. Afinal, por que essas marchas públicas, debates nas mídias televisivas, contratação de empresas publicitárias, produtoras de vídeo, todo esse aparato caríssimo, para convencer um pequeno colégio eleitoral composto de advogados? O que está em jogo realmente? Pelo que sei, a população não está interessada na eleição da OAB, pois não exerce o direito do voto representativo. Se ao menos fosse discutido o imenso problema da corrupção, do patrimonialismo nefasto, a tormentosa questão do impeachemt, esses glamorosos debates podiam servir para o esclarecimento popular. Entretanto, para a infelicidade das pessoas, nenhuma singela palavra.

"O mais extremo fervor dedica-se ao que é totalmente suspeito", disse com muita acuidade, o mestre Thomas Mann. Se a aureola da suspeição coroa as cabeças de uns poucos iluminados, para a grande maioria dos colegas é devida grinalda de Hera da princesa adormecida, uma premiação pela ingenuidade delirante e pelo esquecimento de um passado, onde os advogados citavam menos, porém diziam mais. Diz, Zé do Mercado, o filósofo do Thales Ferraz, parafraseando Montaigne, que se retirarmos todas as citações das petições e dos atuais livros escritos pelos "Datas Vênias", sobrariam pouquíssimas palavras que, sem usar o recurso do exagero, poderiam estar contidas em um telegrama. 

Ivan Bezerra de Sant' Anna 








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