O menino e o Juiz
Contam algumas pessoas, residentes lá para as bandas de Marabá, uma história deverasmente curiosa. Existia nessa região conturbada por inúmeros conflitos sociais, um severo juiz que se gabava ser imensamente justo e cumpridor das normas jurídicas.
Certa manhã, em um sábado feirante e calorento, encontrava-se o juiz petiscando um guisado de tartaruga amazônica, quando foi abordado por uma criança maltrapilha, barriguda e com olhos compridos. “Doutor, posso lhe perguntar uma coisa?”, sussurrou com boca murcha e olhar de tatu.
“Pode, menino”, sorriu a boca meritíssima, emoldurada por um bigode de fino trato. “As tartarugas vivem na água. Uma tartaruga fora da água deixa de ser tartaruga?”, perguntou respeitosamente, o menino. “Claro que não, garoto. Tartaruga é tartaruga, dentro ou fora da água”, sorriu com complacência, o emérito julgador. E arrematou: “Quem lhe ensinou tamanha besteira”?
“Ninguém, seu Doutor. É que meus miolos estão quentes, querendo estourar. Se a tartaruga é tartaruga em qualquer lugar, como é que uma delas está no seu prato? Não é proibido matar tartarugas?”, exclamou o menino com olhos de Padim Ciço.
Com um sorriso de açude na seca, o justo dos justos, explicou: “olha menino, cuidado para não estourar os miolos. Pensar demais por essas bandas é muito perigoso. Existem coisas que não conhece e precisa estudar muito para conhecê-las, seu orelhudo da barriga grande. Uma tartaruga quando morre e vira sopa, deixou de ser tartaruga e se transforma em um objeto da minha propriedade. Assim, essa sopinha é protegida por um dos maiores princípios constitucionais, o direito a proteção da propriedade. É um direito natural de todas as pessoas. Entendeu”?
O menino coçou o nariz, olhou para um lado, meteu o dedo no ouvido e finalmente, exclamou: “olha, seu doutor, não entendo nada dessa tal constitucional, mas acho que entendi sua lição. Quando o Zé Firmino recebeu dinheiro para votar, o voto dele passou a ser um direito protegido do candidato Zé de Edvan, né assim? E deve ter sido esse tal de direito natural que fez o Coronel Inácio matar Genelício e ficar com a terra da viúva. Direito natural vem de natureza, cada um por si e Deus por todos. Na natureza é natural que cada um tenha suas razões. Não é isso, doutor”?
Não sei como terminou a história, no tocante ao banquete de tartaruga do Sr. Juiz. Será que perdeu a fome ou pediu outro prato? No entanto, a fome dos nossos integrantes do Judiciário é infinita, esclarecendo para evitar interpretações precipitadas, que essa carência é por princípios e não por bens materiais. Como adoram os princípios “disso e daquilo”! E entre um princípio e outro, o mágico sentimento de Justiça resplandece misterioso, inefável e intocável. Não é para menos: uma tartaruga protegida por lei, vira sopa protegida por princípios!
Vamos falar, entretanto, de outra sopa, o estacionamento pago nos Shoppings do Sr. João Carlos Paes Mendonça. Ávido por recursos financeiros, o monopolista resolveu cobrar do consumidor, uma taxa progressiva de estacionamento em seus estabelecimentos, visando cobrir o rombo em seus investimentos, realizados naqueles títulos podres norte-americanos. Como tem um monopólio, não se preocupou com a concorrência, pois até o presente momento, ninguém se deu ao trabalho de denunciá-lo ao CADE.
Com a vigência da lei estadual n° 7.595, aprovada pela Assembleia Legislativa, os estabelecimentos comerciais que possuem estacionamentos de apoio à atividade principal, não podiam cobrar estacionamento se o consumidor demonstrasse que consumiu. Para a surpresa de todos e felicidade do Monopolista, o Tribunal de Justiça, através de decisão de um Desembargador, suspendeu a Lei estadual com a alegação de inconstitucionalidade, em decorrência de uma possível lesão ao direito de propriedade e exorbitância ao poder de legislar, tendo como suporte, decisões do STF sobre o objeto do litígio.
É discutível essa interpretação do STF que diz ser da União o monopólio legislativo sobre as atividades econômicas das empresas. A Constituição permite ao município interferir em diversos ângulos, tais como, estabelecer limitações de construir, proibir atividades econômicas insalubres, impedir atividades econômicas em áreas impróprias e fazer cumprir a legislação federal quanto aos direitos dos munícipes, como, por exemplo, os direitos estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor.
Ora, a Lei estadual em questão em momento algum proibiu a atividade das empresas de estacionamento autônomo, ou mesmo estabeleceu gratuidade incondicionada nas empresas que usam estacionamento como atividade instrumental, de caráter auxiliar. A lei estadual apenas especificou uma das atividades econômicas que o CDC considera indevida por se constituir em cobrança duplicada, onerando duplamente o consumidor e quebrando com o princípio da boa fé objetiva. A lei estadual não proibiu a cobrança do preço do estacionamento, apenas declarou que o cidadão que consumiu um produto do estabelecimento, já pagou o estacionamento. A rigor, essa Lei estadual não é necessária para que o Judiciário impeça o pagamento repetido, (isso se chama de bis in idem no linguajar jurídico) por parte do consumidor.
O estacionamento como atividade instrumental se constituem em um fundo de comércio que visa implementar a atividade principal. O fundo de comércio é composto por bens materiais, imateriais, corpóreos, incorpóreos que permite o aviamento, uma mais valia a serviço da atividade principal. Dessa maneira, o estacionamento já foi remunerado quando o consumidor efetua uma compra no estabelecimento comercial. Os Shoppings Center como organizações complexas de teor comercial, colocam vários serviços e produtos em um espaço pequeno para fomentar as vendas. Dessa maneira, estes serviços e produtos colocados à exposição para os consumidores já remuneram indiretamente o estacionamento.
A nossa doutrina civilista é unânime nesse sentido, exemplificada nessa citação:
“Tudo tem, na pior das hipóteses, um custo, e este acaba, direta ou indiretamente, sendo repassado ao consumidor. Assim, se, por exemplo, um restaurante não cobra pelo cafezinho, por certo seu custo já está embutido no preço cobrado pelos demais produtos. Logo, quando a lei fala em ‘remuneração’ não está necessariamente se referindo a preço ou preço cobrado. Deve-se entender o aspecto ‘remuneração’ no sentido estrito de absolutamente qualquer tipo de cobrança ou repasse, direto ou indireto”. NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito material. São Paulo: Saraiva, 2000, pág. 100.”
Os Tribunais declaram constantemente em casos de indenizações por roubo de veículos que “não se trata de manifestação de gentileza nem de amizade, mas de serviço complementar, remunerado de maneira indireta”, ou seja, embutido no preço das mercadorias. (RT696/97,689/226,677/117,655/78,639/60)
É nesse momento que meus miolos começam a ferver! Se para os casos de indenizações, os Tribunais – inclusive o nosso – entendem que o serviço de estacionamento já foi devidamente remunerado pelo consumidor com o consumo, como em caso da cobrança de preço no estacionamento, o serviço não foi mais custeado indiretamente? Magia? Razões obscuras? A dialética da tartaruga e da sopa?
Em verdade, os nossos Tribunais que vivem praticando o construtivismo legislativo, decidindo com base em princípios vagos e abstratos com a desculpa que buscam o Justo, possuem um peculiar sentimento de Justiça que não se estriba em uma lógica objetiva, mas nas parciais lógicas de interesse. Dessa forma, tartaruga só é tartaruga, enquanto não for sopa. O branco será vermelho, a terra será quadrada e os cavalos possuirão chifres, quando for de conveniência das elites poderosas que comandam o Judiciário.
Os Tribunais são instrumentos da classe dominante? Para que responder essa indagação? Que o Tribunal de Justiça de Sergipe responda!
Ivan Bezerra de Sant Anna
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