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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O indevido processo legal

O Indevido Processo Legal



O famoso Devido Processo Legal é um instituto que se origina no Direito inglês, ilustrado pela famosa frase, "um dia na Corte". Isso queria dizer que todo cidadão tinha o direito de ir à Corte para buscar soluções para os seus litígios e os juízes solucionavam esses conflitos embasados nas leis ou, na ausência delas, injucionando com criações judiciais, tendo como fundamentos, os costumes ou em um raciocínio lógico. Tudo muito simples e eficaz para a comunidade.

No entanto, em qualquer País democrático do primeiro mundo, existem espaços proibidos à intervenção judicial, tanto na esfera executiva, legislativa e nos diretos de cidadania. Ou seja: o Judiciário deve intervir apenas para garantir, mas nunca limita-los. A conveniência, a oportunidade e as escolhas técnicas de alta complexidade são privativas da Administração, não podendo o Judiciário intervir nelas. Quantas escolas serão construídas; qual o melhor modelo para a saúde pública; quais os medicamentos que são prioritários para comunidade e quais o executivo pode comprar, equacionados pelo orçamento público; quais atividades, produtos ou medicamentos são nocivos para a coletividade, são questões, dentre outras, privativas do Poder Executivo.  

Assim como, não pode o Judiciário opor à lei criada no Legislativo, um modelo que acha mais justo ou apropriado, a não ser em casos de inconstitucionalidades expressas. Censurar uma lei tendo como base em princípios abstratos, imprecisos e indefinidos é um ato de usurpação, tratando-se de um disfarçado ato legislativo. Um crime contra a Separação dos Poderes, uma violação democrática.

O que dizer dos atos judiciais que censuram e limitam os direitos democráticos de cidadania? Pode um juiz limitar o direito de manifestação em espaço público, interditar a voz que denuncia possíveis atos fraudulentos de personalidades políticas públicas ou impedir a publicação de uma obra artística ou cientifica que verse sobre uma pessoa reconhecidamente pública? É incrível, mas no Brasil isso acontece!

Tempos atrás, um trabalho sobre o Cangaceiro Lampião foi vetado por um juiz, entendendo ser lesivo à honra da sua neta, Vera Lampião. Um absurdo! Uma personalidade histórica, um facínora famoso, não poder ser analisado de maneira controversa quanto à sua sexualidade ou outros fatores, porque um juiz investido de super poderes históricos e sociológicos decidiu sobre a verdade dos fatos históricos.  Esse juiz não somente realizou uma intervenção indevida no espaço das ciências sociais e históricas, como agiu de forma extremada e positivista, transformando uma versão histórica em uma verdade incontestável, relegando as outras ao lixo das inverdades. Qualquer dia desses, um cientista social terá que pedir permissão ao Judiciário para ter o direito de pesquisar, submetendo-se a uma rigorosa censura sobre o que deve ou não publicar.

Qualquer decisão de uma comissão de avaliação pedagógica de uma Universidade terá efeito devolutivo para o ultimo aval do Judiciário. Loucura?! Não, pois foi isso que decidiu um juiz federal, com nome de cantor de Iê-iê-iê, quando reverteu uma decisão colegiada de cunho pedagógico que reprovou uma juíza estadual no curso de mestrado. Ao sub-rogar-se como mestre dos mestres, esse sábio juiz deveria ser sagrado Doutor Pós do Pós e uma indagação deve ser feita: por que existir uma comissão avaliadora, se o juiz poderia fazer esse concurso? Não é perda de tempo submeter um candidato a um penoso exercício seletivo, se o sábio juiz vai dar a última palavra?
O que é o Direito de Cidadania? São Direitos de cunho público e privado que compõem um incorporado feixe de Direito, demarcadores de fronteiras, elementos essenciais para o processo gerativo de uma República Democrática. As linhas limítrofes entre o público e o privado são difusas e imprecisas? Nem tanto! Salvo alguns casos complexos, quase todas as pessoas sabem que alguns atos ou dados somente pertencem a elas e não existe interesse público neles, a não ser, é claro, para os fofoqueiros plantonistas. Existem outros, entretanto, que possuem forte conexidade, repercussão com a área pública, quando não são públicos, propriamente ditos. Assim fica claro que um ato político administrativo efetuado por um homem público, investido de uma personalidade pública, é um ato público e suas interpretações motivacionais interessam à comunidade que deve ser devidamente informada das variadas hipóteses, vocalizadas por pessoas opositoras. Em vez de censurar as denúncias, o Judiciário tem o dever constitucional de garanti-las, permitindo, dessa maneira, um fluxo plural de informações, para melhor julgamento popular do homem público.

O espaço público pertence a todos e o privado a uma pessoa singular e determinada. O Judiciário protege o espaço privado das pessoas contra as maledicências intrusas e maldosas, garante o pleno direito de informação sobre os atos efetuados pelas personalidades públicas e pune aqueles que investidos na túnica pública cometeram atos ilícitos, e, nesse caso, com o uso do pleno aparato cognitivo, amplo contraditório e em uma sentença fundamentada, amparada em robustas provas.    Simples, não é? 

Infelizmente, em nossas plagas contraditórias, não é tão simples! Os nossos juízes confundem os espaços, blindam as personalidades públicas contra as denúncias plurais do cidadão, através do uso ameaçador das tipificações penais, de interditos proibitórios e condenações em danos morais, e quando deveriam aplicar as leis, penalizando os corruptos, não o fazem. Uma herança das estruturas hierárquicas das velhas oligarquias, representada, segundo Roberto da Matta, pela famosa frase, "você sabe com quem está falando?", prevalecendo à presunção "até prova em contrario" da lisura dos atos públicos das autoridades? Nos dias atuais, em nome dessa presunção e de uma obscura lesão à honra privada, políticos já condenados por corrupção e até dirigentes sindicais vão à busca do Judiciário almejando proteções, como um menino covarde procura o pai, dizendo: "papai, o menino me xingou. Dê uma porrada nele".

E quase sempre os juízes brasileiros dão uma porrada na Democracia, apesar das poucas e tímidas advertências do STF de que "a proteção da privacidade e da própria honra não constitui direito absoluto, devendo ceder diante do interesse público, do interesse social" (voto do Min. Carlos Mário Velloso na Petição 577-DF, RTJ 148 (2): 367, maio, 1994; e voto do Min. Eros Grau no HC 87.341-3/ PR, fevereiro, 2006). Ou mesmo dos conselhos doutrinários de um dos maiores expoentes sobre essa matéria, alertando que “Excepciona-se da proteção à pessoa dotada de notoriedade e desde que no exercício de sua atividade, podendo ocorrer a revelação de fatos de interesse público, independentemente de sua anuência." (BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.108.).

Se em nossa gloriosa Nação democrática são muito tímidas as manifestações doutrinárias e judiciais em defesa da liberdade de expressão, em outros países, elas são abundantes e nada melhor do que trazer exemplos de um Judiciário extremado na defesa das honras individuais. O Justice Holmes, legendário combatente contra a usurpação judicial nos EUA, em meados dos anos 30, receoso das extravagantes proteções à honra privada, alertava que “a liberdade preliminar (isto é, de censura) estende-se tanto ao falso como ao verdadeiro; a punição subsequente pode estender-se ao falso e ao verdadeiro”. Em 1964, a Suprema Corte no caso New York Times v. Sullivan limitou o poder de servidores públicos receberem indenizações em ações de difamação, eis que tais agentes não podem ser indenizados por afirmações tidas como falsas sobre desempenho de suas atividades, a não ser que provem que aquelas menções foram publicadas com conhecimento ou grave negligência (reckless disregard) sobre sua falsidade. 

Enfim, que honra um homem público poderia defender, acusado por ter cometido irregularidades no exercício da sua função, fazendo uso do "papai" Judiciário? Faço minhas as sábias palavras de um dos maiores doutrinadores sobre esse assunto, afirmando que uma informação que afete a honra de uma pessoa será lícita e legítima, quando se refere a fatos de relevância pública que questionam a honradez de uma figura pública ou, de uma pessoa privada envolvida em tema de relevância pública e quando existe um interesse legítimo dos membros da sociedade em discutir assuntos que incidam diretamente naquela sociedade. Portanto, diz o mestre, que na área pública, a mácula sobre a honradez não se dá pelo simples fato de se expressar livremente, informando a sociedade sobre determinado ato praticado pelo agente, de forma a duvidar-se de sua honra ou probidade, mas "em tales casos las personas afectadas se deshonran em virtud de sus propios actos". (ALCALÁ, Humberto Nogueira. Problemas Contemporâneos de La Libertad de Expresión. 1ª ed. México: Editorial Porrúa, 2004. p. 161.).

Assim, o que dizer de uma juíza que condena um vereador ao pagamento de danos morais, por acusar um ex-prefeito já condenado por crime de corrupção, de ter cometido irregularidades administrativas? Uma piada? Não, caro leitor, uma comédia trágica, denominada Justiça brasileira!

Ivan Bezerra de Sant Anna

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