Pesquisar este blog

sexta-feira, 7 de março de 2014

Democracia das canetas-fuzis


Que determinado Senador proteja os delinquentes menores de dezoito anos, isso é perfeitamente compreensível. Afinal, um homem com seu perfil de capataz de usina de cana, autoritário e protofascista, não se pode esperar muita coisa, a não ser dar proteção aos garotos marginalizados que atualmente são muito solicitados como integrantes de quadrilhas de roubos e assaltos. Para esses caciques políticos, os integrantes da zona marginal  podem ser de grande serventia para compor grupos de provocação política, grupos paramilitares, ou mesmo, bodes expiatórios, como foi o caso do garoto corintiano.

No entanto, lastima-se que uma pessoa, que tenha uma sólida cultura jurídica, afirme que a modificação da menoridade penal é proibida pela Constituição Federal, por se tratar de uma cláusula pétrea. Uma declaração como essa demonstra que a jurisdicização da política avança em passos grandiosos em nosso País. O Poder Judiciário, cada dia que passa, aumenta sua tutela sobre os poderes eleitos, com interpretações abusivas e usurpativas, fragilizando o processo democrático e retirando do povo e dos seus representantes, a capacidade de de governar.


Ora, o Art. 60 da Constituição Federal que estipula as cláusulas pétreas, diz:

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Qual a disposição Constitucional que estabelece os direitos e garantias individuais?   O Art. 5º em todos seus parágrafos, incisos e letras! Alguma dúvida? Basta olhar  o título II que engloba o art. 5º ao art. 17, com a seguinte nominação: Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Ou seja: os direitos e garantias individuais que são protegidos com as algemas das cláusulas pétreas estão no Art. 5º. E a disposição que se encontra no Art. 228 não é uma garantia individual? É sim, mas uma garantia que pode ser modificada por emenda Constitucional, por não se tratar de uma garantia especial contida no Art. 5º, pois se o legislador Constitucional quisesse teria colocado essa garantia no Art. 5º.

Os integrantes do Supremo Tribunal Federal afirmam que os direitos e garantias protegidos por cláusula pétrea não estão somente no Art.5º, mas em outras disposições normativas e princípios. Ora, essa afirmação é uma posição interpretativa, fundamentalmente construtiva, que inova a Carta Constitucional, transformando-a em um texto meramente orientador para o Supremo Tribunal. Pode-se afirmar que vige em nosso País, o famoso preceito americano que tinha aplicação antes da crise dos anos trinta, vocalizado pelos Justices, que diziam: "A Constituição é aquilo que dissemos ser".

Afinal, onde fica o governo do povo, a democracia, se os sábios nomeados pelo Presidente da República dizem e constroem o que querem, em nome de uma Constituição que eles modelam aos sabores das ideologias, das preferências de classe ou de outros interesses inconfessáveis? Quem verdadeiramente faz as leis no Brasil? O povo, através dos seus representantes ou uma velha elite, encastelada no Poder Judiciário? O questionamento sobre a necessidade quanto a diminuição da idade penal não é o real motivo desse artigo, mas a atuação do Parlamento e do Poder Judiciário.   São indagações pertinentes para realmente esclarecer se existe uma democracia ou uma grande farsa que esconde, sob uma cortina teatral, os reais mecanismos do Poder.

Vamos imaginar um desdobramento hipotético dessa questão da idade penal. Vamos supor que o Sr. Senador e seus pares, resolvam honrar o mandato popular que exercem, incluindo interpretar a Constituição como um Poder independente, aprovando a proposta de emenda Constitucional e, por fim, a Câmara dos Deputados, aprovem integralmente o texto. Os ministros do STF possivelmente julgarão inconstitucional, considerando a violação das cláusulas pétreas, atendendo pedidos inominados. O povo quer, mas o STF diz não, o que fazer? Uma Assembleia Nacional Constituinte para criar uma nova Constituição? Um plebiscito? Já ouvimos declarações de alguns Ministros que as cláusulas pétreas não podem ser matéria de uma consulta popular e outras que afirmam não existir na atual Constituição uma norma que permita a convocação de uma Constituinte. Então, o que fazer se os sábios platônicos, instalados em uma Corte Constitucional sem legitimidade popular, dizem não às mudanças? Não é uma total esquizofrenia?

Esse é o mecanismo do Poder real, com ênfase na manipulação da Constituição, efetuada pelos Ministros, colocando, relocando direitos e garantias em locais que eles querem e vendo como profetas que olham para o céu em busca de uma revelação divina, direitos e proibições em princípios vagos, imprecisos e indeterminados. Uma radiografia precisa do verdadeiro Poder nesse País mostra que as elites precisam de um Poder Judiciário usurpador, porque os políticos populistas muitas vezes são pressionados e fazem legislações moderadamente progressistas. Aí entra os préstimos do Judiciário, censurando e cortando tudo o que põe em risco a reprodução sistêmica. E como o Judiciário tenta se legitimar? Muito simples! Umas sentenças de dano moral de valor insignificante, aqui e acolá; decisões populistas que desmoralizam o Parlamento, visando agradar aos incautos revoltados pela corrupção reinante, tudo isso objetivando esconder a proteção que os juízes dão às elites econômicas. Usando o jargão econômico, resumiria assim: sentenças BNDES para os poderosos e para a maioria da população, sentenças bolsas família.

Querem um bom exemplo da hipocrisia populista do Judiciário? Nos tribunais eleitorais, os juízes condenam alguns "gatos pingados" por compra de votos, com a portentosa fundamentação de garantir a Democracia, o que a OAB denomina de "eleições limpas". No entanto, quase todos os políticos se elegem comprando votos com o saldo da corrupção nos negócios públicos e se algum candidato ousar denunciar no horário eleitoral é punido com a perda do tempo e direito de resposta. Em resumo: o Judiciário finge garantir a Democracia e ao mesmo tempo, provoca a sua implosão com suas sentenças censoras e irracionais.

A magia caótica do (des)governo judicial com suas interpretações criativas e crescente poder discricionário dos reis juízes é resumida em uma fórmula lacaniana do significante vazio. Para as Democracias consolidadas que respeitam a soberania popular, o conceito de Justiça significa preferencialmente a lei, a carta ordem da população soberana. Ou seja: o significante possui um claro e determinado significado, um forte conteúdo denotativo, sem arrengas metafóricas e metonímicas. Em nosso País, entretanto, o conceito de Justiça é esvaziado e transformado em um significante vazio, ou na melhor das hipóteses , um significante maleável por princípios vagos e indeterminados. Assim, o princípio de justiça é um significante esvaziado, e por tudo  nele caber, mantém precariamente a equivalência entre demandas díspares, atendendo minimamente às demandas populares e maximizando os interesses das elites poderosas.

Se existe uma instituição inimiga da Democracia brasileira, essa seguramente é o Poder Judiciário. Em épocas de chumbo, das perversas ditaduras brasileiras, o Judiciário se omitiu e por vezes foi cúmplice. Em momentos mais pacíficos, onde os complexos de inferioridade e subserviência irrigam as sementes das vaidades sufocadas, emergiu o Judiciário como superego da sociedade, o pai simbólico, um nanico do Grande Outro, uma trágica presepada autoritária. Outrora, os fuzis; agora, as canetas judiciais. Se para Lenin, a guerra é a política por outros meios, seguramente podemos dizer que o Judiciário brasileiro é a Ditadura por outros meios.

Ivan Bezerra de Sant Anna

Nenhum comentário:

Postar um comentário