A Segunda Pátria
Caiu em minhas mãos, o livro do Sr. Miguel Sanches Neto, A Segunda Pátria, um texto despretensioso quanto ao estilo, às construções criativas das frases e parágrafos, entretanto, de uma pretenciosidade ímpar em relação ao seu conteúdo ficcional que envolve, arrebata e produz dissensões provocativas.
Evidentemente, não se trata de uma obra de refinamentos linguísticos, baseada em uma escola do mestre Machado de Assis, ou de rebuscadas construções metafóricas na esteira de um Vladimir Nabokov, por exemplo. É uma obra singela, construída em capítulos curtos, parágrafos pequenos e períodos reduzidos, quase telegráficos. O autor tenta ser impactante e criativo no metralhar dos períodos reduzidos, mas falta-lhe a o toque genial das alternâncias sincopadas e das variações dialogais entre diversificadas frases, algumas curtas e de impacto emocional, outras, porém, longas e com muita densidade poética. Esse preceito, no entanto, o autor não aplica em seu livro, ao contrário, foi econômico e parece ter usado uma fita métrica para a construção dos parágrafos, períodos e frases.
É uma ficção inquietante e desaconselhada àqueles que cultuam a imagem do Sr. Getulio Vargas. O autor, em sua ficção estonteante, não é nem um pouquinho benevolente com o Ditador do Estado Novo, pintando-o com as cores dramáticas do nazismo, um político subalterno e obediente ao Estado do Social Nacionalismo alemão. É insofismável que o anão dos pampas era um positivista autoritário, eterno namorado do Estado corporativista fascista, do aparelhamento dos sindicatos pelo Estado e gostava de saber que o Sr. Filinto Muller pendurava os comunista em "paus de arara", isso quando não lhes davam uma passagem de ida sem volta para a "cidade dos pés juntos".
Entretanto, o seu tamanho físico era desproporcional com sua imensa ambição pelo Poder, impulsionado por um ego inflado por paranóias e manias de tintura psicótica. Assim sendo, o minúsculo Aquiles das plagas rio-grandense jamais seria um subalterno de um Hitler ou de qualquer outro, assemelhando-se com mais realismo ao Generalíssimo Franco ou a Salazar, diferenciando-se, porém, por seu populismo de manhosidade arteira, um pragmatismo astucioso que gerava desconfianças e tensões constante com os militares e aliados. Se o Sr. Vargas não era um nazista sintomático como tenta insinuar o autor, também não era nenhum Pai dos trabalhadores como querem os falsos esquerdistas de agora, pois o seu maior presente aos trabalhadores foi a CLT, uma cópia da Carta di Lavoro do Estado fascista italiano.
O texto ficcional denuncia - apesar de ser um relato historicamente impossível - a omissão do Sr. Getulio Vargas quanto a tentativa pré-guerra de germanização do Sul do País por grupos ligados ao Nazismo alemão. Os historiadores brasileiros, na sua grande maioria, devem aos brasileiros maiores esclarecimentos sobre essa época dramática, onde os grupos paramilitares nazistas praticavam abertamente o racismo, insultavam e cuspiam negros, chegando a situações extremas com o confinamento e a morte.
Pode-se afirmar que o livro do Sr. Miguel Sanches é uma denúncia contra o racismo e um alerta para que as pessoas estejam atentas para que todas as sementes de processos de desumanização sejam esterilizadas antes das suas germinações. Uma brincadeira preconceituosa pode ser apenas um pequeno sarro, um inocente divertimento, mas quando inseridas em contextos de grandes crises sociais e econômicas, podem ser fermentos ou referências ideológicas para o desencadeamento das trágicas ideias de intolerância e desumanização das diferenças. As épocas críticas precisam de bodes expiatórios, e desta forma, caça-se bruxas, mata-se negros e comunistas, elevando-se todas as diferenças culturais e sociais no altar da demonização.
Não sei se inspirou o autor, mas essa história de um homem negro germanófilo, lembra a trajetória de Tobias Barreto que foi um grande admirador da cultura germânica, chegando a criar um jornal totalmente escrito em alemão, predicados que não impressionaram Eugênia Câmara, dando preferência aos versos pungentes de Castro Alves aos poemas melosos do Sr. Tobias, metrificados, organizados, tal como as homogêneas e ordenadas florestas germânicas. Há quem afirme que o mulato sergipano era um tímido e nutria um enorme complexo de inferioridade, apegando-se de forma maníaca à cultura alemã, uma negação inconsciente à sua origem negra, uma tentativa de reconhecimento social em época de grande preconceito racial. Tobias poderia ser um Trajano - personagem chave do romance - se vivesse na época da efervescência fascista, e possivelmente levaria cusparadas dos nazistas, mesmo sendo um negro culto e idólatra da cultura germânica.
Cuspir, segundo o autor, era matar simbolicamente o inimigo que mesmo já estando morto, ainda sobrevivia em sua dignidade simbólica. Os alemães cuspiam nos cadáveres para retirar-lhes a dignidade, transformado-os em lixo, numa escória. Quando Julius Meister, o Cuspidor, lançava sua insidiosa saliva nos negros, matava as suas existências simbólicas, transformando-os em zumbis, mortos-vivos que andavam errantes pelo mundo, à procura de um sentido inexistente, à espera da morte física libertadora.
O autor alerta aos cuspidores: uma cusparada pode ferir mais que um punhal, pois essa seiva venenosa fere mortalmente a alma, e por ser um ato de desprezo pela diversificada existência humana, ele não mata somente a vida simbólica de uma pessoa, mas escarra veneno no rosto da humanidade.
Ivan Bezerra de Sant Anna
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