Maria Madalena, a apóstola maior.
O filme Madalena de Garth Davis, estrelado por Ronney Mara no papel de Madalena, e Joaquim Phoenix representando Jesus, no mínimo, é um filme inquietante e que atiça à imaginação reflexiva. O linguajar fílmico nada tem de inovador, e para quem está acostumado com um dinamismo das frases fílmicas, o filme pode ser até enfadonho. Entretanto, essa impressão se revela falsa, ao longo do trajeto do filme, uma vez que o conteúdo é provocante, confrontando com as interpretações bíblicas passadas, baseando-se em novos documentos descobertos recentemente, e escritos de estudiosos, como, por exemplo, Margaret George, Henry Lincoln, Michael Baigent e Richard Leigh, autores do livro O Santo Graal e a Linhagem Sagrada.
Muitos equívocos sobre Maria de Madalena já foram devidamente esclarecidos ao longo do tempo, um deles que ela era prostituta, um mito perverso criado pelo Papa Gregório Magno, atendendo aos preceitos patriarcal-machista do judaísmo do velho testamento, processualmente incorporados à doutrina cristã por motivações variadas, dentre elas, a criação de uma moral comportamental que visava a sedimentação da instituição como poder secular. Outro equívoco comumente divulgado, um deslize que parece ser sem importância, mas que acrescenta algo sútil e insidioso, é a referência da palavra Madalena como nome acrescentado à Maria, quando na verdade, Madalena era um apelido referencial à cidade de Magdala, situada na costa ocidental da Galiléia. Um simples equívoco? Não! Ao esconder a origem de Maria de Magdala, os doutos patriarcas da Idade Media, evitaram referências que prejudicassem o mito criado de prostituta, um pérfido mito que destruiu à grandeza de Maria, uma mulher que Cristo escolheu como a sua apóstola maior. Felizmente, no ano de 2016, o Vaticano reconhece Maria de Magdala como apóstola de Jesus, um reconhecimento que serve de referencial para a luta de emancipação da mulher, que da costela submissa do Adão judaico, passou a ser a gênese maior do universo.
O filme mostra Maria como uma mulher diferente de todas as outras, rejeitando o destino de mulher-propriedade que lhe era imposta pela cultura religiosa judaica, o que lhe deu a má fama de uma possuída pelo demônio, tendo sido submetida pelos familiares a um ritual de afogamento, interrompido pelo bondoso pai. Essa cena me reportou aos procedimentos de tortura por afogamento, muito utilizados pela Inquisição, e, posteriormente, por governantes autocráticos que usavam tais processos para expulsar o “demônio comunista” do corpo dos heréticos. Seria Maria de Magdala uma louca? Mesmo seguidora do Nazareno, essa dúvida se manteve como um gralhar insistente, até Maria de Nazaré lhe revelar algo sobre Jesus: “Quando era pequeno, ele recorria muito a mim. Percebia tudo mal. Chorava a noite inteira porque os amigos diziam que ele tinha o diabo no corpo. Eu amava-o, mas...ele nunca foi totalmente meu.”
Jesus de Nazaré e Maria de Magdala tinham algo em comum: o diabo que os religiosos judaicos achavam que eles carregavam dentro de si! Um pecado original cometido por Eva ao comer a maçã e oferta-la a Adão, o que fez suas sucessoras dignas do Demo, maliciosas, bruxas ardilosas, merecedoras das futuras fogueiras que estariam por vir. Ontem, labaredas ardentes; hoje, as línguas flamejantes do machismo. Esse pecado que o escritor José Saramago - O evangelho segundo Jesus Cristo - descreveu com essas palavras que Simeão dissera a José: "Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para todo o sempre, talvez elas, porque inventaram aquele primeiro pecado de que todos os mais nasceram, soubessem dizer-nos o que nos falta saber, Que partes divina e demoníaca as compõem, que espécie de humanidade transportam dentro de si". Esse pecado que os gregos consideravam a divinização humana, encarnada no suplício de Prometeu ao desafiar os deuses do Olimpo. Esse pecado que Jesus trazia dentro de si, dando-lhe a real dimensão das dores da humanidade, do amor e da redenção. Mas isso não é pecado, mas o processo do encontro do ser humano com Deus, dizia o Nazareno, e por desafiar o deuses judaicos foi supliciado em uma cruz.
Se José, o carpinteiro, já desconfiava das reais possibilidades da mulher, um comichão que lhe corroía os miolos depois que ouvira as palavras do enigmático Simeão, o seu filho Jesus não teve dúvidas alguma quando se deparou com Maria de Magdala. Teve a certeza que a mulher era o gênero central do mundo, a encarnada gênese da humanidade, e a ela poderia confiar a sua mensagem final, embora já sabedor que Pedro, o apóstolo guerreiro, iria negá-lo antes do terceiro canto do galo. Sabia de antemão do suplício da Cruz, mas o que o fazia sofrer era o desvirtuamento dos seus ideais de igualdade e fraternidade que seriam negados por seus apóstolos varões, territorialistas e guerreiros, que não enxergavam que o reino de Deus deveria ser feito na terra, com amor e paciência, alicerçado por novas ideias, e não por reprodução dos reinos de dominação. Quando lhe perguntavam onde se encontrava o paraíso, ele simplesmente dizia: “larguem tudo que possuem e me sigam. Vamos viver o aqui e o agora”. Ele sabia que só Maria de Magdala poderia entendê-lo, pois somente a abrangência da espiritualidade feminina poderia perceber que ele não pregava regras de condutas moralistas do judaísmo, preceitos explicativos da origem do mundo, mas uma ética transcendental que processualmente construísse novos valores.
Quando Maria de Magdala contou aos apóstolos que tinha conversado com Jesus depois da sua morte, em cada dos seus rostos plasmou-se o desespero e a revolta. Uns perguntaram quando ele voltaria para se sagrar rei, quanto a outros, como foi o caso de Pedro, exclamou desesperado: “Falhámos. Não há Reino nenhum. O povo erguer-se-ia? Ele seria coroado rei? Alguma vez ele vos disse isso? Então e o Reino? Como é que isso pode estar certo? Maria, ele deixou-nos. Está morto.” E mesmo com a declaração de Maria de Magdala que ele “não morreu. Todo este tempo procurámos uma mudança no mundo, mas não é o que pensávamos. O Reino está aqui, agora. Cresce conosco, com cada ato de amor e carinho, com o nosso perdão. O mundo só mudará quando nós mudarmos”, Pedro repicou: “Não é correcto vires agora aqui dizer-nos que ele te escolheu e não a nós. Que ele te trouxe alguma mensagem especial. É a tua mensagem. Não a dele. Enfraqueceste-nos, Maria. Enfraqueceste-o a ele”. Maria, ouvindo o galo cantar pela terceira vez, apenas disse:
“Só posso esperar que tenham ouvido o que eu disse. Espero que me vejam como sou. Valorizo cada um de vós, tal como ele. São todos meus irmãos e agradeço-vos.Mas não ficarei aqui calada. Serei ouvida. Não perdes o ânimo. Nem agora. Não perguntaste como seria? O Reino? É como uma semente. Uma única semente de mostarda... que uma mulher levou e plantou no seu jardim. E cresceu... e cresceu. E as aves dos ares fizeram ninhos nos seus ramos”.
Qual a mensagem que esse socialista escrevente usurpou desse relato fílmico? Que a dialética, esse exercício lógico maravilhoso, nos permite ver as contradições do mundo e a possibilidade de começar a resolvê-las. Se Maria falou em plantar uma semente de mostarda, vejo a práxis revolucionária como um ato de plantar um semente de tamareira que leva quase 90 anos para dar os primeiros frutos, fato esse que me deixa tranquilo, sereno e despreocupado, pois, conta a lenda que certa vez um jovem encontrou um senhor de idade plantando tâmaras e logo perguntou: porque o senhor planta tâmaras se o senhor não vai colher? O senhor respondeu: “se todos pensassem como você, ninguém comeria tâmaras. Cultive, construa e plante ações que não sejam apenas para você, mas que sirvam para todos. Nossas ações hoje refletem o futuro... se não é tempo de colher, é tempo de semear”. Assim, como entendo que a pressa de fruir os frutos é a dileta amiga das soluções autoritárias das mudanças “na marra”, uma mudança que muda, mas nada muda, prefiro pensar que semear idéias e exemplos, encorpados por uma práxis corajosa, são as sementes de mostarda que o dogmatismo voluntarista ou o oportunismo egocêntrico de uma esquerda equivocada quase nunca semeou. Essa pobre esquerda nominal que nunca apreendeu o essencial conceito de dupla negação, o processo de retorno reflexivo às situações pré-constituídas, sem muito esforço, não precisou dos três cantos dos galos hebreus para negar Marx.
Desta forma, despido da angústia de pensar em um futuro reino que virá quando o caminho se findar dobrado, lembro-me do Pablo Neruda de que “morro em cada onda cada dia/ morro cada dia em cada onda/“ mas o dia e a onda nunca morrem. Então por que a pressa e a angústia? Afinal,
Todos viemos do mar
Somos crianças das marés
E sempre devemos retornar"
Ivan Bezerra de Sant’ Anna
Publicado no site http://www.facebook.com/ibezerra52; http://ibezerra.xpg.com.br e no Blog http://terradonunca-ibezerra.blogspot.com/
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