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quarta-feira, 10 de julho de 2019

Santinhos

Não éramos santinhos na época da minha infância e adolescente, pois estávamos mais para “enfants terribles”, uma garotada que adorava brincadeiras que resvalava na soleira do perverso, contrastando com a imagem de garotos obedientes que algumas pessoas saudosistas tentam divulgar nas redes sociais.

Em contrapartida, buscávamos à socialização, cultivando a empatia e a solidariedade com os outros meninos que integravam o nosso grupo, quase sempre sob a liderança de um garoto que se destacava por sua força, engenhosidade e talento nos variados jogos que praticávamos. Futebol, pião, bola de gude, empinar arraia, jogo de botão, cada um desses em uma época do ano, com exceção do futebol, esporte que desafiava as estações anuais.

Como se pode observar, esses jogos enfatizavam a destreza, a competitividade, mas sem algum componente de agressividade destrutiva, com exceção das guerras entre grupos rivais, mesmo assim havia muita moderação, - no máximo, um hematoma, um olho roxo -, porque o grupo adversário era para ser vencido e nunca destruído, pois se destruídos não haveria grupos que, pelas suas derrotas, atestassem a nossa força.

Nos grupos de garotos não havia lugar para um garoto com laivos de sociopatia, um egocêntrico extremado que desconhecia a empatia e a solidariedade. As lideranças se firmavam pelos seus destaques em nossas atividades e pelo grau de solidariedade protetora. Assim como em uma alcateia, o lobo alfa deveria permanentemente demostrar o seu valor, e quando substituído, aceitava a sua nova posição no grupo, pois o importa era o lema “um por todos e todos por um”.

Alguns tinham fascinação por armas, mas desconheço qualquer antigo companheiro que saiu distribuindo tiros, matando pessoas inocentes. Poderíamos gostar de armas e fazíamos simulacros de madeira - outras até mais semelhantes -, e sonhávamos participar de guerras em defesa da nossa Pátria, no entanto, jamais usá-las contra os residentes em nossa Nação. O inimigo era os outros, aqueles que tentavam violar a nossa soberania, e o mais interessante é que não imaginávamos matando os ladrões que entravam furtivamente em nossas casas armados com facas, mas apenas metê-los na cadeia, afinal, mesmo tendo pavor a eles, sabíamos que não eram  os “outros”, mas pessoas como nós que trilharam por caminhos obscuros.

E os nossos pais, na sua grande maioria muito autoritários, que os pedagogos modernos chamavam de “pai patrão”? Com eles não havia muito diálogos, pois o lema pedagógico era ouvir sempre e falar nunca. Eles vociferavam, ameaçavam, davam dolorosos corretivos, mas para conhecimento do leitor, eles se faziam presentes, demonstrando preocupações e proteção. Dessa maneira, mesmo de forma dolorosa e autoritária, sabíamos que estávamos protegidos, ao contrário da maioria dos pais na atualidade que substituem as suas presenças pela ausência de limites e a distribuição de fartos bens materiais, com a esfarrapada desculpa de que tem que dar aos filhos o que não teve. Como os atuais garotos não fizeram jus às inúmeras dávidas, esses pais estão fabricando indolentes, irresponsáveis, egocêntricos, e se alguns deles já possuem distorções psicóticas, a tragédia já é anunciada, e ante a essa cegueira, não cabe a indagação “onde foi que errei?”.

O erro, talvez, é não perceber que o desenvolvimento cognitivo e emocional de uma criança passa por varias fases, dentre elas, a fase heterônima, aquela que uma criança necessita da autoridade dos pais e professores para guiá-las no primaveril mundo das normas, possibilitando-as um embasamento sustentado para que possam galgar a desafiante fase da autonomia, momento em que elas desafiam as regras existentes em busca de regras compartilhadas com outros membros sociais, uma síntese movida pela tensão dialética entre a heteronomia e a autonomia.

O leitor pode pensar que estou a defender um modelo de educação autoritária, a pedagogia dos cassetetes, da continência servil e da cantoria dos hinos compulsórios. Jamais! Como também não cairia na tentação aliciante do populismo pós-moderno, tão a gosto de certos pedagogos, exemplificado pela maníaca abnegação de alguns teóricos  que declaram que o particípio ativo do verbo “presidir” pode ser flexionado para “presidenta”, mesmo que essa empreitada colida frontalmente com as regras estabelecidas da língua pátria.É a pedagogia do voluntarismo subjetivo, do “eu quero, do “eu sou”, mesmo que essas assertivas choquem-se perigosamente com os conceitos científicos ou com as normas de convivência compartilhadas. E para isso contribuem não somente os pais, mas também as falsas instituições republicanas, mais de perto, os juízes quando emitem sentenças desvinculadas das leis,  produções  usurpativas da vontade popular, motivadas pelo subjetivismo autoritário dos seus desejos.

Dessa maneira, tudo é verdade e mentira, fluido e pastoso, e como dizia Hegel, um mundo totalizado pelas contradições dilacerantes “é menos do que nada”, um campo de batalha do “salve-se quem puder”, a noite do mundo onde trafegam os zumbis psicóticos. Não é um mundo do desafio à liberdade, mas uma ampla gaiola onde tem vigência a lei do mais forte, um mercado de trocas sem regras onde competem a raposa e a galinha, o lobo e o cordeiro, quais os resultados já sabemos. Esse é o conceito da liberdade dos falsos liberais, tão bem exemplificado pelo pensador francês Jean Léon Jaurès: “o mercado livre é uma raposa livre em um galinheiro livre”.

É nessa imensa gaiola da falsa liberdade que está inserida a garotada em dias atuais. E quem será a raposa ou a galinha? Vai depender de alguns fatores, dentre eles, a vigência da seleção natural. Estímulos visuais e publicitários  não faltam para motivar o aparecimento do predador: um falso filósofo que homenageia a cultura do cowboy americano, pousando com um rifle nas mãos, tendo ao fundo uma cabeça de veado pendurada na parede; um Presidente da República que publica uma foto comendo sanduíche com uma pistola na cintura! No entanto, essas divulgações seriam minimizadas se os pais, os professores, os intelectuais orgânicos, se preocupassem com a solidão desprotegida das crianças e adolescentes que, na maioria dos casos, podem ser transformadas em egocêntricos exploradores, e em alguns casos específicos, em pessoas despidas de empatia, que usam o suporte do imaginário para manipular de maneira perversa o campo do simbólico-normativo, sociopatas que caçam vidas humanas.

Elocubrações de um velho socialista pessimista? Apenas uma lembrança das aulas do saudoso professor de cálculos matemáticos complexos, Omar Katunda, quando afirmava que para adentrar ao mundo criativo dos cálculos diferenciais e integrais, tornava-se imperioso o estudo reflexivo da teoria dos limites.

Ivan Bezerra de Sant’ Anna

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