Tatal, o último Beatnik
Ao amanhecer da quinta-feira dessa semana, ao pontuar os primeiros raios de sol, Tatal se foi. Tinha sido uma árdua luta contra um inexorável câncer que não lhe deu sequer um minuto de trégua, porém, mesmo sem poder mais falar, seus olhos possivelmente ainda brilhavam.
A última vez que o vi com saúde, embora sob o peso dos anos, era o mesmo Tatal, o Beatnik. Cabelos encaracolados, bigode a la Aramis mosqueteiro, um pigarro a todo instante, esse era o Tatal que conheci na minha adolescência.
Embora ele fosse muito mais velho que eu, todos convivíamos na antiga avenida Simão Dias, sem deixar de levar em conta a idade e a força física que denotavam respeito hierárquico. Assim, eu, Anuna, Babo, Veia, Dadui, convivíamos pacificamente com Tatal, Roberto, Bedeu, sem maiores problemas, como exceção de alguns incidentes, como, por exemplo, quando meu primo Zito se irritava e lançava um garoto desafiante no canal, segundo ele, para aprender a nadar. No entanto, verdade seja dita: pelo fato de ser meu primo e protetor, jamais fui submetido a essa didática especial de natação.
Apesar da diferença de idade, Tatal gostava da minha companhia, talvez pelo fato de termos a música como denominador comum. Eu tocava violão e piano, e ele era um guitarrista Beatnik, uma carreira solo que se apresentava nas festas de amigos. Algumas vezes lhe acompanhei nas suas aventuras musicais, e quando alguém fazia a sua apresentação, ele atacava com uma única música que tinha composto, ao som da sua velha guitarra que era amplificada por uma caixa de som - a dita cuja precisava de uma pedra em cima para não vibrar. Até o presente momento, tenho sérias dúvidas em que idioma a letra da canção Beautiful Ana foi composta, se em inglês, português ou ambas. Mas o Tatal nem estava aí para os críticos musicas, muito menos para dar explicações. Tocava despreocupadamente, com um cigarro pendente na boca, com um calma do Nirvana que faria o próprio Buda morrer de inveja.
Ele insistia que eu me dedicasse ao estudo da guitarra elétrica, segundo ele, o principal instrumento do Rock, que por sua vez era o grito primal do mundo. De tanto insistir, acabei aceitando por empréstimo a sua velha guitarra com caixa e tudo. Apesar dos protestos tímidos dos vizinhos aos meus novos sons de estridência revolucionária, continuei a todo vapor, motivado pela gana guerreira de um mongol em batalha, até o dia que na minha porta bateu a D. Elizete, mãe de Tatal. “Ivan”, disse sorrindo, “Tatal por acaso lhe deu algum fio grosso e longo?” Ele me deu um cabo de Guitarra, D. Elizete, respondi. “Ah, meu filho, o cabo que Tatal lhe deu é o fio da minha enceradeira que ele cortou!” Assim, com o cabo elétrico voltando à sua original função, acabava minha carreira de guitarrista das multidões.
Esse era o Tatal! O bom e pacífico Tatal era original e inimitável. Se era desconhecido para a maioria das pessoas, em milhões delas, é uma tarefa árdua descobrir um Tatal. Um anônimo para muitos, um ser de singularidade estonteante para quem teve a sorte de conhecê-lo.
Quando seu inanimado corpo chegou ao velatório, os três mosqueteiros, eu, Zalo e Zito - os primos Sant’ Anna -, formamos a sua solitária guarda de honra para que ele não ficasse sozinho. O acaso nos permitiu que fôssemos nós, os amigos do passado, os primeiros a zelar pelo seu corpo, uma honra que jamais esquecerei.
Vá em paz, meu roqueiro inesquecível.
Ivan Bezerra de Sant’ Anna
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