Vamos à Terra do Nunca?
Não me canso de rever o filme de Marc Forster, Em busca da Terra do Nunca, baseado na peça do escritor escocês J. M. Barrie, representado na tela pelo ator inglês, o excelente Johnny Depp. Um belíssimo filme! Uma interpretação que amplia os horizontes das inúmeras e homogêneas interpretações que se apegam à costumeira ideia que os residentes da Terra do Nunca são eternamente infantis, usando o escapismo do imaginário para se refugiarem do temor da morte inexorável, enfim, uma metáfora do Puer Aeternus (eterna criança) em busca do paraíso infantil.
Apesar de laureado, aclamado através da linha do tempo, concordo com a psicanalista junguiana Marie-Louise Von Franz que a obra literária que descreve com exatidão a problemática da eterna criança é o Pequeno Príncipe de Antoine de Saint Exupéry. Essa obra que comumente é interpretada como um manancial de citações e reflexões humanista, em verdade, para a amiga e colaboradora de Carl Gustav Jung, é um grito de dor de uma pessoa que se refugia na floresta escura do imaginário, perpassada pela angústia de uma terrível escolha: ultrapassar a linha tênue que divisa a insanidade esquisofrênica ou manter-se na dura realidade de um mundo de sentidos e valores contraditórios - a noite do mundo hegeliano - atuando como um psicótico predador, um extremo egocêntrico narcisista, em que a medida dos valores de sociabilidade são seus desejos.
Atualmente o mundo está cheio de pequenos príncipes, pessoas imaturas, possessivas, cultuadores da libertinagem individualista, filhos diletos do pós-modernismo neoliberal, desraigados de valores solidários, e se algum deles fala em solidariedade, ponham as barbas de molho, visto que é da boca para fora, pois enquanto enriquecem às custas do erário público, dão migalhas às pessoas, chamado-as de companheiras. Assim, o de tacape na mão, o da língua afiada na mentira, o juiz da caneta autoritária, os que transformam conceitos em opiniões, todos eles, vestidos em mantos diferentes, são faces de uma mesma moeda.
Analisando a história da Terra do Nunca, Peter Pan é uma criança que se recusa crescer, mas o conjunto da obra é de grande densidade dialética, um passeio pela trilha existencial da vida autêntica. Uma bela metáfora de uma viagem, onde os guias turísticos, Peter Pan e as fadinhas, levam os viajantes para uma ilha das fantasias e sonhos, local que não é um paraíso fugático, mas, sobretudo, uma escola onde se ensina conjugar os sonhos com a realidade. Lá está o Capitão Gancho, símbolo do voluntarismo humano, algo muito importante para o desenvolvimento da humanidade, mas se não for associado às normas de solidariedade, torna-se destrutivo.
Lá está o crocodilo tic-tac, aquele que engoliu o relógio do tempo, de boca sempre aberta, pois ele sabe que, mais dia ou menos dia, todos cairão nela. Ele marca o tempo cronológico de todos que um dia cairão em sua bocarra cheias de dentes afiados. Peter Pan sabe disso, uma vez que é inexorável. Ele não luta contra o Capitão Gancho para fazê-lo cair na boca do Tic-tac, dado que, com sua luta ou não, Gancho, assim como todos os viventes, perecerá entre os dentes do crocodilo. Ele luta contra a ideologia individualista do Capitão, pelos seus sonhos libertários, pela comunhão solidária dos viventes. Peter Pan demonstra para os meninos viajantes que o tempo cronológico se encerra nos dentes do Crocodilo Tic-tac, mas o tempo existencial é infinito na sua verticalidade congelada, assim como uma fotografia que tem como função parar o tempo cronológico.
Portanto, quando os meninos voltam da sua viagem, sabem que Peter Pan não poderá ficar no mundo Real, pois ele é o eterno guia de viagem à Terra do Nunca. Aprenderam que o lado empreendedor do Capitão Gancho, despido do individualismo possessivo, estará com eles, e, dessa maneira, crescerão estimulados pelo desafio da Vida, no entanto, jamais esquecerão da Terra do Nunca, da criança imaginativa que nunca deve morrer, dos voos solidários como gaivotas, mesmo sob o olhar predador do voo alto da solitária águia.
Um dia seremos um belo jantar para o crocodilo tic-tac. E daí? Ele pode comer nossos corpos, mas jamais os nossos sonhos, assim como, apagar a nossa densidade existencial.
Ivan Bezerra de Sant’ Anna
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